O Barquinho Cultural

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domingo, 23 de abril de 2023

Celso Horta: Um Brasileiro


Presos políticos no Presidio de Barro Branco: Em pé – da esquerda pra direita: Ariston Lucena, Gilberto Beloque, Paulo Vanucchi, Genoino, Mané Cirilo. Sentados: Oséas Duarte, Aton Fon, Reinaldo Mourano, Celso Horta, Hamilton Pereira.


"Quando a gente desce do pau-de-arara, pensa que nunca mais vai conseguir andar. Foi assim, debaixo dos pontapés impacientes dos meus torturadores, que fui levado para a sala ao lado, onde continuei sendo torturado na “cadeira do dragão”. Pés e mãos atados aos pés e braços da cadeira, como no pau-de-arara, continuei submetido a choques, espancamentos generalizados, 'telefones' e outras violências. Nunca mais vi o corpo atarracado e troncudo do meu comandante. Nunca mais ouvi a sua voz, ou mesmo os gritos de Jonas. Foi tudo ali, naquele instante mágico, de dor, de violência infernal."

Esse texto é um trecho do artigo "Jonas, um brasileiro: Testemunho sobre seu assassinato na Oban", publicado em "Versões e Ficções: O sequestro da história", editado em 1997 pela Fundação Perseu Abramo, na esteira do lançamento do filme "O que é isso, companheiro?", de Bruno Barreto, baseado no livro autobiográfico de Fernando Gabeira. Celso Horta ficou particularmente indignado (assim como os outros articulistas do livro e muitos mais que se manifestaram de alguma forma naqueles anos em que as redes sociais eletrônicas engatinhavam) com a imagem que o filme traçou de Jonas, codinome do potiguar  Virgílio Gomes da Silva, que estava no comando do sequestro do embaixador dos EUA Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969.

O filme retratava "Jonas" como impiedoso, cruel, até insano, o que, segundo os que o conheceram, em nada correspondia ao seu jeito de ser e lidar com os companheiros. Horta não se conformava com as coisas mostradas no filme, Gabeira, à época, não contestou - disse que havia um acordo com Barreto e o roteirista Leopoldo Serran de não interferir na produção, e o diretor reconhece certas "liberdades poéticas".

O livro lançado pela FPA foi uma tentativa de se resgatar a história pelo ponto de vista dos que a viveram (e sobreviveram).

Horta, que participou da ação, foi capturado quase no mesmo momento em que Jonas, foi barbaramente torturado nas dependências da Oban, que antecedeu o DOI/Codi, na rua Tutóia, nos deixou nesta sexta-feira, 21 de abril de 2023, feriado de Tiradentes, aos 74 anos.


domingo, 26 de março de 2023

Shake it up, baby! Os 60 anos de 'Please Please Me'

Em 22 de março de 1963, "The Beatles" lançavam na Inglaterra seu primeiro Long Playing (LP), "Please Please Me". Eu, nem dois anos de idade completados, pirei com aquele som. No colo de mamãe Hirde, dando aquela mamada matinal, ouvi estupefato: "One, two, three, four... Well, she was just seventeen / You know what I mean"... Não entendi nada, claro, mas aquela voz que mais tarde soube ser de Sir James Paul McCartney causou um colapso em minha pueril mente que, de pronto, me fez largar o bico do peito maternal e balançar as ainda frágeis e arqueadas ancas.

"Misery" veio arrebatar meus ouvidos ao conhecer um dueto em perfeita harmonia. Mas "Anna" me mostrou que Lennon tinha uma dor no peito que só muitos anos depois, ao conhecer sua história, pude vislumbrar entender.

"Chains" me apresenta a voz miúda e os dedos ágeis de George, que se tornaria algum tempo depois meu Beatle favorito. Aí vem Ringo com "Boys", o narigudo da batera que, muitos anos depois, é celebrado ligeiramente em um episódio da série "Outlander".

"Ask me why" encantou meus ouvidos com aqueles "ai, ai, ai" pronunciados por John e emoldurados pelo coro de Paul e George...

Aí vem a faixa-título, já lançada anteriormente em single (no meu tempo, compacto simples): "come on, come on, come on..." Aquele eu bebê nunca mais quis saber de leite depois disso...Por favor, me agrade... com algo mais... Rs...

Papai Chico vira o disco e vem "Love me Do"... Esse o primeiro sucesso dos Fab4. Eu me lembro! Já ficava fascinado com a voz aveludada de Macca, que muitos anos após minha pequena Iracema também apreciaria. Aquela gaita (harmônica) de John pontuando tudo.

"P.S. I Love You" tem um ritmo quente, mostrando que Ringo sabia das coisas. E a harmonização das vozes? Uma criança não podia ficar indiferente. Eu não fiquei. Quis pouco depois imitar aquilo com minhas irmãs, Vilma e Sônia, sem sucesso.

Aí vem "sha-lá-lá"... "Baby, It's You", mostrando o puta cantor que Lennon é.. E dizem ainda que o cara estava com um baita resfriado! Volta George, meio fanho, com "Do You Want to Know a Secret", com um balanço que me acompanharia pouco tempo depois nos bailinhos em que eu mais gostava de ouvir do que de dançar...

Aquele gosto de mel, com Paul, me soava estranho ("A Taste of Honey")... Muito Macca anos 1970 para meu gosto (quando John o chamou de compositor de 'tolas canções de amor'). Mas tem uns momentos legais...

"There's a Place" é animada, fazia o bebê aproveitar e liberar aquele xixi básico só pra se livrar da fralda chata e a mamãe passar o talquinho fresquinho...

Para fechar a obra, "Twist and Shout". Nossa! Quando John, na frente da rainha Bete, mandou a ricaiada balançar as joias, e quando, tempos depois, Matthew Broderick fez aquele cover em "Curtindo a Vida Adoidado", firmou essa canção como o arquétipo de Beatles de sua época. Eu ao ouvir isso bebê me tornou um menino, jovem, homem e ancião feliz.

P.S. I love you, Beatles...


sexta-feira, 1 de julho de 2022

Tudo está bem? Tudo está bem!


A cantora, compositora e atriz paulistana Vanessa Bumagny lançou nesta sexta-feira, 1º de julho de 2022, o videoclipe da canção "Tudo Está Bem", de sua autoria, que abre seu quarto CD, "Cinema Apocalipse". O clipe está disponível em seu canal no YouTube e o disco, nas plataformas de streaming de música.

Nesses tempos sombrios de pandemia, crise econômica, desemprego, fome e um governo que parece apostar no quanto pior, melhor, Vanessa canta sobre lutar dançando, sobre resistir com potência e sobre olhar, também, para o que está bom, "porque alegria é a maior revolução que existe", defende a letra.

Assista ao clipe:






O clipe foi filmado em parceria com a SP Escola de Teatro, nas imediações de onde foi gravado, além também do Teatro Satyros, e conta com a participação de amigos e parceiros, como o ativista Jean Wyllys, ex-deputado federal que saiu do país após sofrer ameaças a ele e sua família.

Vanessa conta que a inspiração para a letra veio depois de assistir a uma aula de história de Rita Von Hunty, na qual ela disse que é exatamente isso que o sistema espera de você: ficar tão arrasado que se perde a esperança na mudança. "E nasceu a canção como antídoto para todo esse desamparo."

Rita Von Hunty é o nome artístico de Guilherme Terreri Lima Pereira, professor, ator, youtuber, comediante e drag queen, nascido em Ribeirão Preto, interior de São Paulo.

Vanessa se inspirou também nas palavras do professor norte-americano Jon Kabat-Zinn, especialista em meditação, que diz “se você tá respirando tem mais coisa boa com você do que ruim”.

O disco "Cinema Apocalipse" foi lançado em janeiro de 2022. Produzido por Rafael Castro, o álbum conta com dez faixas incluindo parcerias com Zeca Baleiro, Fernanda Takai, Chico César e Luiz Tatit, além do poema “Lady Lazarus”, de Sylvia Plath, musicado por Vanessa.

A seguir, Vanessa nos conta sobre por que "Tudo Está Bem" é uma afirmação em vez de interrogação:

Bloga: Você está lançando agora nesta sexta-feira, dia primeiro de julho, o clipe e o single “Tudo está bem”, que é uma mensagem interessante para esses tempos atuais. Você fala na letra “lutar dançando, resistir com potência e olhar também para o que está bom”. O que está bom nesses tempos, Vanessa?

Vanessa: Olha eu acho que o que está bom depende muito das vidas das pessoas, mas basicamente estar vivo é o que está bom. Porque enquanto a gente estiver vivo, eu acho que a gente não tem outra alternativa a não ser lutar. E esse plano do qual eu falo na música, que é essa coisa de inundar a gente, deixar a gente soterrado numa avalanche de notícias ruins, que vão te deixando cada vez mais deprimido, com aquela sensação de que nem adianta fazer nada porque tanta coisa para fazer, está tudo muito ruim, isso para eles, digo para o status quo, é muito confortável que as pessoas achem que não dá para fazer nada. Então eu acho que esse olhar para o que está bom, que acaba sendo assim ‘primeiro eu estou vivo’, então eu preciso lutar, porque se eu não luto a coisa só vai tender a piorar, né? E é isso. Acho que o que está bem é muito difícil falar: ‘olha só quanta coisa boa, não é que eu estou jogando o jogo do contente falando ‘ah não, gente, está tudo ótimo’,  sabe, aquelas coisas meio hipócritas que alguns políticos querem falar, do tipo ‘não pense em crise, trabalhe’, não é nada disso, é muito pelo contrário.

Bloga: É, a gente precisa estar, como dizia lá o Caetano, atento e forte, né?

Vanessa: Exatamente! Não temos tempo de temer a morte.

Bloga: Você disse que a letra surgiu depois que você ouviu uma aula de história da Rita Von Hunty, em que ela disse que o sistema quer a gente arrasada, triste e cansada. A alegria pode vencer esses tempos sombrios?

Vanessa: Eu acho que só alegria pode. Porque a partir do momento que a gente tem alguma alegria dentro de nós, a gente vai em direção ao que é construtivo. Se a gente pensar que está vivendo em uma era de muito impulso de morte, eu acho que uma hora que a gente mais precisa fomentar o impulso de vida.

Bloga: Eles querem a gente mesmo triste e arrasada, né? Para que o domínio fique mais fácil. Porque daí vem com aquele agrado, né? Eu acho que é por aí...

Vanessa: É exatamente isso. E comprando, porque o capitalismo também tem um pouco essa pegada de que quanto você está muito triste, muito frustrado, muito detonado, muito deprimido, você fica achando que se tiver alguma coisa, tiver outra coisa, comprar isso, comprar aquilo, você vai se sentir melhor. Ou também medicado, essa coisa da medicação psiquiátrica, que está tão em voga nesses dias. Ah, está deprimido? Dá-lhe medicação...

Bloga: O que não é assim recomendado, né? Eu acho que a gente tem que trazer aqui dentro aquela energia, aquela força para resistir. Você fala na letra assim, o que que não dá para esperar exatamente? Tem coisa que você pode esperar, deixar para depois. Agora nesse momento atual o que é urgente, o que não dá para deixar para depois? O que você quis dizer com essa frase?

Vanessa: Só voltando àquilo que você falou que não é o ideal medicar, eu acho que tem gente que precisa sim de medicação. Não é que seja contra medicação, tem de medicar sim as pessoas que precisam e muita gente precisa porque realmente as coisas são muito difíceis, mas eu acho que só a medicação não é o que vai resolver. A gente vive numa sociedade que adoece, então medicação, sim, é importante, mas também tem que tentar reverter essa sociedade que adoece para que a gente não precise mais de medicação.

Sobre o que não dá pra deixar para depois é o que cada um tem que saber, quem sou eu para dizer o que não dá para deixar para depois? Eu acho que a gente tem muitas lutas e a gente tem que saber cada um a sua própria. Mas eu acho que não dá para deixar para depois, por exemplo, você se organizar e se educar, tentar se informar, saber quem é que está fazendo? Quem é que está lutando? Quem é que está mexendo? Então eu, por exemplo, tento me aproximar de tudo que o PSol [Partido Socialismo e Liberdade] faz ou fala, de tudo que o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra] está fazendo, eu tento me aproximar dessas lutas, me organizar junto com eles, tentar chegar perto. Quem é que está na luta? Porque acho que a luta é coletiva, não é individual... Individualmente a gente consegue fazer muito pouca coisa. A gente tem que se unir enquanto classe trabalhadora, enquanto cidadão, a gente tem que entender melhor o que é ser cidadão, acho que isso não dá para esperar.

Bloga: Exato, porque nós tivemos nesse meio tempo, além da eleição dessa turma aí, uma pandemia, que isolou as pessoas, isso desmobilizou, digamos assim, mas claro que muitos continuaram lutando, então não dá para deixar para depois né? E outra coisa... Na letra você cita o Jon Kabat-Zinn, um especialista em meditação, que fala ‘se você está respirando então tem mais coisa boa em você do que ruim’. Aí eu me lembrei do Jair Bolsonaro caçoando daquelas pessoas que estavam sofrendo lá em Manaus porque não tinham respiradores. Como ter esperança respirando o mesmo ar que gente como essa?

Vanessa: Eu acho meio difícil, né? Quanto mais tiver pessoas como essas, mais a gente tem que focar na nossa energia, no que nos dá força, porque jogar a toalha não pode ser não opção. Como é que eu me protejo? Eu não consigo ver os vídeos desse cara, eu me sinto tão mal vendo esse tipo de coisa, principalmente contra mulheres, os direitos das mulheres, o direito ao aborto, o direito da mulher ao próprio corpo. Então se a gente ficar olhando para isso e pensar no que nos causa a gente vai perecer, não vai conseguir. Então a ideia é você fazer o que te dá energia. Eu gosto muito do Jon Kabat-Zinn, porque ele me salva em muitos momentos, ele tem vários recursos, ele ensina sobre meditação. A meditação é uma grande ferramenta para a gente se fortalecer e é perto dessas pessoas que a gente tem que ficar, das que nos dão ferramentas para ter força para lidar com tudo isso e consegui sair para frente e ir para a luta. Então é nessas horas que a gente precisa mais ainda ficar perto do que nos dá força, do que nos dá energia, nos alimenta. Temos a Rita von Hunty, temos Jean Wyllys, que estão ali no clipe representados, o Jean numa participação especial, a Rita que é a musa inspiradora, pessoas que estão mostrando pra gente como lutar e estão dando as direções, as diretrizes. Como eu falei: a gente precisa se agrupar, a luta não é individual, é em grupo, então são essas pessoas que eu quero ter perto.

Bloga: Eu enxerguei nessa canção uma mensagem também de amor. Você concorda comigo?

Vanessa: Exatamente, totalmente. A questão é: estamos do lado da morte ou do lado da vida? E o que representa melhor a vida do que o amor? Nada representa mais que o amor, o amor pela vida e o amor pelas outras pessoas, o amor pela sociedade em geral, melhor distribuição de renda, que as pessoas possam comer, possam morar... isso é puro amor.

Bloga: Ou seja, é entre quem defende a vida e quem defende a morte...

Vanessa: Exatamente. Como faz para se ficar do lado da vida, se alimentando do que nos dá força.


Acesse aqui a primeira entrevista de Vanessa ao Blog por Bloga, por ocasião do lançamento de seu terceiro CD, "O Segundo Sexo"




sexta-feira, 4 de março de 2022

Bodas de Ouro: "Diana"


Diana - o famoso Disco Azul. A carioca Ana Maria Siqueira Iório começou a cantar profissionalmente aos 16 anos no selo Caravelle, do Rio de Janeiro, cantando bossa nova, e encantou com sua voz um executivo da CBS, que encarregou o produtor Raulzito (ele mesmo, Raul Seixas) de trabalhar com ela. De início, dois compactos simples e em seguida o LP. O disco tem quatro composições do baiano Raulzito com o carioca Mauro Motta: "Estou Completamente Apaixonada", "Você Tem Que Aceitar", "Hoje Sonhei Com Você" e "Ainda Queima a Esperança" (lado A do segundo compacto dela, de 1971). As outras faixas são versões de músicas estrangeiras - uma exigência das gravadoras à época -, sendo o maior sucesso uma versão dela e de Rossini Pinto para a obra do americano Neil Diamond "I Am... I Said", que ganhou aqui o título "Por que Brigamos". Em 2014, Diannah (nova grafia de seu nome artístico... coisas de numerologia...) voltou à cena depois que a niteroiense indie Bárbara Eugênio regravou "Por que Brigamos", que rendeu umas apresentações juntas, com participações de Fernando Catatau (do Cidadão Instigado) e de Karina Buhr. A baiana-recifense Karina, aliás muito parecida com a Diana dos anos 1970, compôs, com Paulinho Moska, uma música chamada "Eu Menti pra Você" (que dá nome a seu primeiro CD, de 2010), coincidentemente quase o mesmo nome da primeira música gravada por Diana, em 1969, "Menti pra Você", de sua autoria... Eu nunca tive esse disco, mas as músicas dela eram tocadas sem parar nas rádios e programas de auditório na TV. E eu adorava!

Clica aí e ouça o LP - e preste atenção na bela produção do Maluco Beleza: Diana 1972

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Bodas de Ouro: "Slade Alive", Slade


No começo de 1972, com a boa repercussão de três singles da banda no Reino Unido, o empresário Chas Chandler (ex-baixista do The Animals que descobriu e empresariou Jimi Hendrix) resolve lançar o primeiro álbum ao vivo do Slade.

O grupo vinha dos bons frutos colhidos do LP "Coz I Luv You" - sim, a grafia errada era uma de suas "marcas registradas" -, uma compilação de músicas de seus dois LPs e singles anteriores, lançado apenas na Alemanha, Holanda, Noruega, Suécia, Austrália e Argentina, de onde foram extraídos os três singles.

O material de "Slade Alive" foi retirado de suas três apresentações no Command Theatre Studio (Londres) em 19, 20 e 21 de outubro de 1971, com uma audiência de cerca de 300 pessoas por noite.

Em 24 de março de 1972 o disco sai e logo alcança o 2º lugar nas paradas britânicas, lá permanecendo por 58 semanas. Nos EUA, entrou nas 200 Mais da Billboard na 158ª colocação.

A banda integrada por Noddy Holder (vocal líder, guitarra rítmica), Dave Hill (guitarra principal e backing vocals), Jim Lea (baixo e backing vocals) e Don Powell (bateria) apresenta no LP três composições próprias - "In Like a Shot From My Gun", "Know Who You Are" e "Keep on Rocking" - e covers de Ten Years After ("Hear Me Calling", de Alvin Lee), The Lovin' Spoonful ("Darling Be Home Soon", de John Sebastian), Bobby Marchan ("Get Down With It") e Steppenwolf ("Born To Be Wild", de Mars Bonfire).

É considerado por muitos o melhor álbum ao vivo de rock de todos os tempos, classificado como hard rock tocado por uma banda muito glam rock dos 70's.

Ao ouvir esse LP, trazido pelo namorado de minha irmã mais velha Vilma Mercuri Caetano, que viria se tornar meu cunhado, Wanderley Caetano, eu nunca mais fui o mesmo. Para o bem ou para o mal... Para ouvir no último volume!

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Bodas de Ouro: "O Bofe", de Roberto e Erasmo Carlos


A trilha nacional de "O Bofe", novela de Bráulio Pedroso (depois Lauro César Muniz), dirigida por Lima Duarte, Daniel Filho e Wálter Campos, que a TV Globo exibiu entre junho de 1972 e janeiro de 1973 no horário das 22h, é a única que os compositores Roberto e Erasmo Carlos fizeram para um folhetim televiso. Era comum, na época, os produtores encomendarem as trilhas nacionais a uma dupla de compositores, para dar mais "unidade" aos temas.

Segundo conta Erasmo, deram-lhes 15 dias para compor as 12 faixas, que eles cumpriram aproveitando algumas composições inéditas então, apenas adaptando aos personagens aos quais se referiam. Mas os intérpretes foram diversos outros, e não os ex-ídolos da Jovem Guarda.

Ali temos então cantores do pequeno cast da Som Livre (como Renata e Flávia, Djalma Dias, Sandra e Betinho); a já consagrada Elza Soares; Osmar Milito, um pianista de jazz de presença constante em especiais musicais da emissora, que comparece em duas faixas, uma acompanhando Luna e Suza (da Som Livre) e a outra com o Quarteto Forma, do qual fazia parte Eduardo Lage, que em 1977 se tornaria maestro de Roberto; Os Vips, dupla da Jovem Guarda formadas pelos irmãos Ronaldo Luís e Márcio Augusto Antonucci; Claudio Faissal, que cantava na banda de Ronnie Von e depois seguiu carreira solo interpretando canções em italiano, Jacks Wu, também intérprete em vários outras trilhas de novela da época (pai da roqueira de Salvador Shalin Way Attemporais)

O disco tem também uma faixa cantada por Eustáquio Sena, produtor do LP junto com Waltel Branco nos arranjos, e outra por Nelson Motta, que gravou a faixa "Madame Sabe Tudo", da personagem Stanislava Grotoviska, interpretada por Ziembinski (primeiro personagem travestido da TV, dizem), após Marilia Pêra não ter gostado de seu trabalho.

A novela era um escracho ao desejo de ascensão na sociedade e ao próprio formato de telenovelas. A audiência era pífia e Bráulio acabou substituído por César Muniz, mas mesmo assim não decolou. Bem como o disco, que passou batido e é considerado até por Motta um trabalho mediano da dupla Carlos.

Uma única música da trilha, "Moço", agora interpretada por Erasmo, teve sobrevida e acabou entrando em outra novela, "A Idade da Loba", de Alcione Araújo, direção de Jayme Monjardim e Marcos Schechtmann, exibida de julho de 1995 a janeiro de 1996 na TV Bandeirantes e que o Tremendão regravou no EP "Quem disse que não faço samba", de 2019.

A gente tinha esse LP em casa ou na loja de discos de meu pai, mas não me lembro de tê-lo escutado. Só me recordo de ficar com medo da personagem de Ziembinski, que enchia a cara de xarope e sonhava com o galã Jardel Filho, um dos bofes (à época, sujeito grosseiro, sem educação) da trama, junto de Cláudio Marzo.

"Moço
Vê se larga o osso
Com a vida no bolso
Procure um amor
Não tem"

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Bodas de ouro: "Cicatrizes", MPB-4

2022: Ano em que muitos discos essenciais completam 50 anos de lançamento. Eu, com 60, me lembro de muitos deles. E vou relembrar alguns que foram importantes - pelo menos para mim.

Começo com esse do MPB-4, "Cicatrizes", lançado pela Philips/Phonogram, com produção de Mazzola/Roberto Menescal. Magro, Ruy, Miltinho e Aquiles Rique Reis cantam aqui gente de alto quilate, como os hoje esquecidos Tom e Dito ('Agiborê'), Sidney Miller ('O Navegante'), o já clássico "San Vicente", de Fernando Brant e Milton Nascimento, lançado em Clube da Esquina, outro cinquentão que logo será aqui resenhado; Maurício Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho ('Desalento'); Murilo Antunes, outro expoente do pessoal da esquina de Minas, com Sirlan ('Viva Zapátria'); a faixa título, do mestre Paulo César Pinheiro em parceira com Miltinho; Chico Buarque, que comparece com "Partido Alto" - esta a que me marcou profundamente na época, que me lembro de ouvi-la comendo uma boa feijoada no boteco da esquina da Silva Bueno, onde o pai tinha papelaria que vendia discos; Jorge Ben (ante do sufixo Jor), com "Bom Dia, Boa Tarde, Boa Noite"; a angustiante (e, incrivelmente, ignorada pela censura) "Pesadelo", de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós; tem ainda Caymmi ('Canto de Nanã'); mais PC Pinheiro com Baden Powell ('Última Forma'); uma dos portelenses Cabana e Norival Reis, "Ilu Ayê (Terra da Vida)", e novamente PC Pinheiro com Tapajós, "Faz Tempo". Um disco de grande qualidade, de um tempo de um Brasil que se julgava enterrado e esquecido teima em voltar...

"E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha aí..."

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

George Harrison: Um gigante entre gigantes



Hoje, 29/11/2021, 20 anos da morte de George Harrison, que divide com John Lennon o posto de meu Beatle preferido. O cara morreu com 58 anos, 2 a menos do que tenho hoje, o que é estranho... 

Por que George está ao lado de Lennon em minhas preferências? Poxa, o cara era a guitarra solo da maioria dos hits dos Fab Four - afinal, foi admitido na banda porque sabia mais acordes dos rockões da época que John e Paul. O cara só apresentava música foda e, talvez por isso, não ganhava tanto espaço assim nos álbuns.

Ele introduziu os amigos ao universo indiano, à meditação transcedental, e 'otras cositas más'. O que acumulou nesse tempo todo e não pôde aproveitar ele rasgou no álbum triplo "All Things Must Pass", em 1970. Depois, fez parceria com, vejam só, Bob Dylan ('I'd have you anytime'). Organizou, em 1971, o Concert for Bangladesh, megashow beneficente antes de Live Aid (1985) e USA for Africa (1985 também).

Foi o primeiro Beatle a vir ao Brasil (1979), se bem que não para tocar, mas para ver uma corrida de Fórmula 1, uma de suas paixões. Em 1988, ele formou o que se convencionou chamar de superbanda com Jeff Lynne, Roy Orbison, Bob Dylan e Tom Petty, os Traveling Wilburys.

Em 1970, o single "My Sweet Lord" apareceu lá na loja de discos de meu pai e eu caí de quatro, literalmente; antes, ou depois, não me lembro, veio "Mother", de Lennon... Tá, "Another Day", de McCartney, e, depois, "It Don't Come Easy", de Ringo, também fizeram minha cabeça, eu que já pirara com o álbum "Abbey Road", que, vejam só, traz dois dos maiores sucessos de Harrison: "Something" e "Here Comes The Sun".

Mas algo em "Mother" e "My Sweet Lord" me pegou de jeito. Eu tinha 9, 10 anos, não tinha ideia do que as letras diziam, mas entendi a mensagem para a mãe de Lennon e para Deus de Harrison. Não precisava entender a letra... Isso é arte.

Paul, dizem, era um perfeccionista e ególatra e Lennon, líder um tanto inseguro que, ao lado de Yoko, encontrou um sentido para a vida num ativismo que quase lhe custou deportação dos EUA, o país que amou e que lhe tirou a vida em 1980. Ringo o bom sujeito, sobrevivente de doenças infantis e que, injustiçado, nunca, à época, teve seu valor reconhecido.

George, o tal Beatle quieto, podia não ter a palavra final nas decisões da banda, mas suas intervenções não eram pouca coisa. Basta ver o grande tributo "Concert for George", gravado no primeiro aniversário de sua morte, no qual músicos como Ravi Shankar, Eric Clapton, Jeff Lynne, Billy Preston, Tom Petty, além de seu filho Dhani e os ex-parceiros Paul McCartney e Ringo Starr, prestam justa homenagem ao menino. Fico imaginando se, vivo estivesse, o que Lennon diria ali...

George era um gigante entre gigantes e, se na sombra por opção ou falta de, se abria ao sol quando possível e eternizou lindas obras.

sábado, 16 de outubro de 2021

Juliana Lima canta a saudade e a fé em dias melhores


Ninguém contava com isso. Não estava escrito em nenhuma profecia ou no Apocalipse - aliás, se estava, não soubemos ler. Primeiro, sobe ao poder aqui em terras tupiniquins o avesso, do avesso, do avesso, do avesso, do avesso (pra não dizer coisa pior). Aí, vem essa peste que dizima, só em território pátrio, 600 mil vidas. Não merecíamos.

Quem não embarcou na onda que varreu nossa democracia - e muitos, felizmente, a renegaram -, sentiu e está ainda a sentir um nó na garganta e uma dor aguda no peito de angústia e revolta de ter de viver algo que não poderia estar acontecendo. Afinal, que fizemos nós para ter isso? Nada fizemos, e não temos de assumir uma culpa que não nos cabe.

Enfim... A vida mudou, tudo mudou. Mas, se agora havemos de evitar contatos frequentes e nos proteger como possível, o que trazemos dentro de nós não mudou. Aquela conversa no bar ou no sofá da sala ainda é necessária, aquela ida à rua e suas maravilhas não nos abandonou... Só não podemos realizar. O que fazer? Como por para fora tudo isso que está aqui represado?

Em seu novo trabalho solo, "Esperança", Juliana Lima responde. Sete anos depois de "Aquariana", com singles e trabalhos junto ao power trio de forró pé-de-serra Trio Beijo de Moça no caminho, o novo disco resgata o clima de "O Dom", CD de 2007 que, nunca escondi, é meu xodó. Melancólico, às vezes sombrio, "Esperança" busca retratar  como o momento atual nos afeta, mas joga uma luz, tênue, mas ainda uma possibilidade, no que pode vir.

Talvez sob influência desses tempos terríveis, a obra destaca, em duas músicas, "Meus planos" e "A gente se mistura", a necessidade de se viver intensamente o momento, pois o "tempo é tão curto..."  Parceria com Analiss, "Meus planos" vai fundo na premência de aproveitar cada momento junto de seu amor, que, afinal, "é brisa e nem avisa que vai chegar".

"A gente se mistura", um reggae composto com a companheira Juliana Cranchi, não faz concessões: "Fé e certeza de que há uma força maior / que vai me guiar para onde eu estiver / para um caminho cada vez maior". Mais fé e esperança não sei... Na veia

"Que seja leve", que abre o disco, faz uma profissão de fé na arte de se fazer o que gosta: afinal, a vida é breve, então, "cultive a sua fé no que você quer e ouça seu coração". Não um pedido de desculpas, mas delicadamente dizendo que não abre mão daquilo em que acredita. Importante, em qualquer contexto.

"Temporal" canta a busca do amor tranquilo, imune às intempéries. Um apelo a um pouco de paz nesses tempos "que não são brincadeira"? Pede que o amor chegue perto dela e que diga que não vai ter fim. O aconchego também expresso em "Mãe", inequivocamente referente à impossibilidade, no começo dessa pandemia, de se ver os entes queridos e abraçar, beijar, estar junto.

"Eu vou lembrar de você" fala da perda de alguém querido, que a brisa leve das manhãs levou, retomando imagem de canção homônima que integra o CD "Aquariana", de 2013. "Mulher", na sequência, lembra de que a vida requer coragem e que o mundo pede gentileza. Força e doçura. Precisa falar mais?

"Licença", com Valéria Pisauro, é sobre saudade, a "dor que se queima sem pedir licença de mãos dadas com a solidão". Tema impossível de não se recorrer agora e sempre. Com uma sanfona (ou fole, ou acordeão) que dá um clima de rasgar os pulsos... Poxa, Juliana...

"Silêncio das Cidades", parceria com Natalia Bueno, retoma o assunto pandemia. Composta no começo disso tudo, com clipe filmado em Paranapiacaba, distrito de Santo André (SP), fala da vontade de estar juntos novamente, da casa como prisão, do mundo que adoeceu e precisamos acordar e aprender que é hora de mudar. O tempo que sobra mas sem que se o possa aproveitar. "Nossa companhia é o silêncio das cidades vazias."

O disco fecha com a canção-título, "Esperança", só voz e piano. Pinta um retrato tenebroso no início, ilustrado por um canto denso, uma penumbra envolvendo tudo, revelando que "a esperança se perdeu/ coração triste adoeceu / inverno que se demora / a voz se cala e a alma chora". Mas aí vem a esperança, que vai renascer, "coração pede pra bater/ inverno que vai embora/ vem primavera/ trás nova aurora. Obrigado, Juliana...

O disco foi gravado no  Estúdio The Village, com produção de Augusto Albuquerque, com distribuição a cargo da Trattore e está disponível, desde 15 de outubro, em todas as plataformas digitais.

Neste domingo, 17 de outubro, às 19h, haverá o lançamento de "Esperança" no canal de Juliana Lima no YouTube, em live com repertório desse e dos trabalhos anteriores da artista.


sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

McCartney III: Nostalgia da modernidade


Acabei de ouvir McCartney III, novo álbum de Paul McCartney, no qual, como nos anteriores na mesma linha do "faz-tudo" McCartney I (1970) e McCartney II (1980), ele toca praticamente todos os instrumentos e compôs todas as músicas. O I teve "Baby, I'm Amazed" e o II, "Coming Up". Este qual será o "carro-chefe"? Isso ainda existe? O trabalho surpreende, pois traz o velho Macca antenado com as novas tecnologias e acoplado às descobertas do passado. No geral, gostei. Um Paul maduro, com a voz mudada, mas capaz de imprimir sentimentos ao cantar. Abaixo, minhas impressões iniciais, do ponto de vista melódico, harmônico, dos arranjos, não, ainda, das letras. Sou assim desde menino: o som me chama mais a atenção que a palavra...


Long tailed winter bird - Sonoridade meio oriental, marroquina... Lá no final, entram incidentalmente os melotrons de Strawberry Fields Forever...


Find my way - Uma interessante combinação da rouquidão dos 78 anos ao falsete sessentista; parte instrumental remonta às experiências de estúdio em Abbey Road.

Pretty boys - Gosto do violão de aço e do contracanto.

Women and wives - Diz Paul que se inspirou em biografia de Huddie William Ledbetter, um dos pioneiros do chamado "blues rural" (segundo o Wikipedia). Gosto do piano bem dos primórdios de Ray Charles.

Lavatory lil - Guitarras meio claptonianas, talvez homenagem a Harrison?

Deep deep feeling - Umas nuances de Live and let die; a faixa mais longa... Sabe (no sentido de ter sabor) a Wings em certos momentos...

Slidin' - Um Paul bem 'heavy metal', mas poupando a voz (poderia ele hoje ainda cantar 'Helter Skelter'?)

The kiss of Venus - Começa um folkinzinho em falsete; violão bem Blackbird, Michelle... Ele sola legal...

Seize the day - Uma sonoridade à la lado B de Abbey Road.

Deep down - Uma profusão de sintetizadores, baterias eletrônicas, metais, programações... Um Macca moderno dos 80's. Bases bem black.

Winter bird/When winter comes - Diz que foi gravada em 1992, com George Martin na mesa. Um Paul dos primórdios, a voz está muito limpa (caramba, 28 anos fazem baita diferença!)



quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Morte de Vanusa resgata e sepulta o 'eu' menino


Não imaginava que a notícia da morte da cantora e compositora Vanusa fosse me impactar tanto. Uma insuficiência respiratória a levou no dia 8 de novembro de 2020, aos 73 anos, em seu leito em um lar para idosos na cidade de Santos, litoral de São Paulo.

Não vou dizer que acompanhava sua carreira nos últimos anos. Havia muito tempo que não ouvia nada dela, nem me dei conta de que Zeca Baleiro havia produzido seu último CD, que leva seu nome de batismo, "Vanusa Santos Flores", de 2015. Mas quando menino eu era apaixonado pela loira.

Sua imagem me remete à casa de São Caetano do Sul, onde vivi até cerca de 9 anos de idade. À prima loira de lábios carnudos que me encantava, à professora do primeiro ano de primário que se parecia um pouco com ela. Às canções que ouvia no rádio enquanto a mãe passava roupas na edícula em frente ao jardim onde eu enterrava seus talheres e ferramentas do pai.

A mesma São Caetano do Sul onde, na data de aniversário da cidade, 28 de julho, meu pai nos levava ao estádio municipal, então chamado Lauro Gomes de Almeida, hoje Anacleto Campanella, para os shows promovidos pela prefeitura para marcar a efeméride.

Não me lembro se Vanusa chegou a cantar em um desses shows de aniversário da cidade, provavelmente sim. Ia toda a galera da Jovem Guarda - menos Roberto... ele nunca foi. Tinha shows dos Aqualoucos, o calhambeque que se desmanchava enquanto andava, o globo da morte com as motos, os campeonatos esportivos e... os shows!

Era minha hora favorita: ouvir aqueles cantores que eu via no Show do Dia Sete, na TV Record, ou no quadro Os Galãs Cantam e Dançam, do programa do Silvio Santos. Chacrinha acho que ainda não me chamava a atenção.

Mas a Vanusa me causava uma coisa diferente. Gostava de Wanderlea, Rosemary, Waldirene, Martinha, depois Rita Lee, mas a Vanusa era diferente. Não sei explicar. Nos meus sete, oito anos sua voz, sua imagem, seu jeito, seu olhar me elevavam a universos oníricos então inexplorados por tão jovem pessoa.

E também seu repertório diferia das músicas dos demais artistas populares de então. Ela cantou Belchior antes de Elis, gravou Milton Nascimento, João Bosco e Aldir Blanc, Luiz Melodia, Carlinhos Vergueiro, Caetano Veloso, Raul Seixas, Zé Rodrix, até Hermeto Paschoal, vinhetava Beatles... E com uma dignidade e leveza...

Poucos anos depois, com acesso a revistas de fofocas como InTerValo, Sétimo Céu, Melodias, que minha mãe, tias e primas liam, ficava chateado com as histórias tristes que contavam sobre suas crises no casamento com Antônio Marcos, este um cara que sempre me incomodava por seu ar ao mesmo tempo rebelde e depressivo.

Depois nos mudamos de São Caetano e nunca mais fomos aos shows de aniversário e Vanusa começou a ser substituída por outras artistas, conforme ia ampliando meu universo para além dos programa televisivos, por causa da loja de discos que meu pai comprou.

Quando ela reapareceu no vexaminoso episódio do Hino Nacional, em 2009, soube que andava doente, e fiquei chocado. Não ri da tropeçada. Para falar a verdade, nem procurei ouvir o episódio.

Mas hoje, após sua partida me resgatar aquele menino, ouvi tudo que pude de seus tempos gloriosos. E esse último disco está divino. A voz já denunciando o passar do tempo, mas ainda firme e linda. O repertório impecável: Angela Ro Ro, Nô Stopa, Zé Ramalho, Vander Lee, entre outros, e a produção de Zeca tão delicada...

Da mesma forma que essa sua passagem trouxe de volta à memória o garotinho de calças curtas de São Caetano, seus sonhos e devaneios, também o sepultou. Não há mais essas ilusões, aquela ingenuidade, aquele resplendor que a descoberta do mundo favorecia...

Agora, mais de 50 anos depois, o menino de outrora habita o asilo desse corpo idoso que mantém em uma caixa dourada da memória as lembranças de uma vida que desabrochava e não sabia o quanto isso ia doer um dia...


"Vou tentar salvar esse pouco que ainda resta

Da minha juventude"

(Mistérios, Zé Geraldo e Mario Marcos)


sexta-feira, 9 de outubro de 2020

O que importa...

Gyula Benczúr, Narciso (1881)
Gyula Benczúr, Narciso (1881)




















Com o que você se preocupa hoje?

O que lhe é importante?

O que você faz de sua vida hoje

de que se orgulhará amanhã?


Por que não ama quem cuida de você?

Por que não dá atenção a quem lhe admira?

Do que você vai se orgulhar amanhã

quando estiver sozinho no mundo?


Por que lhe é tão difícil se importar?

Por que acha que sua vida é tão importante

a ponto de ignorar que outras vidas importam?

Do que vai se orgulhar amanhã?


Vê defeitos em todos?

Vê falhas e fraquezas no outro?

É um super-humano, é um perfeito?

E se orgulha disso hoje e amanhã?


Sua carne é fraca, seu sangue é vermelho

Veio do pó como todos, e pra lá regressará

Seu orgulho virará cinzas

e espere que se lembrem de você como?


Com o que se importa hoje?

Amanhã talvez seja tarde demais

para perceber que sua importância

foi importante para quem você desprezou


sábado, 21 de setembro de 2019

Ponha um arco-íris na sua moringa

O título é de uma velha canção do pernambucano Paulo Diniz, anos 70. Cara anda meio sumido -  meio, não, totalmente. Música alto-astral, solar, litorânea. Há quem veja aí algo alienante, dada a época barra-pesada em que surgiu...

Deviam ser assim mesmo aqueles tempos. A turma da MPB puta com os cabeludos e suas guitarras. Mas aí eram anos 60. Nos 70, eu já adolescendo, os que partiram para a luta armada presos, exilados ou mortos.

A música brasileira com outros contornos. Gente fingindo ser gringa, cantando em inglês. Mas os fodões - Caetano, Gil, Chico - voltam do "passeio" involuntário ao exterior e fazem coisas ótimas. E começam a surgir outros grandes compositores: Luiz Melodia, Walter Franco, Jards Macalé, Raul Seixas, Sérgio Sampaio, Djavan, Gonzaguinha, Tim Maia...

Eu me lembro bem dos anos 70. Estava na cidade grande, São Paulo, e acompanhava bastante o que a indústria fonográfica estava fazendo, pois comprava e vendia discos. Na TV, aquela coisa: Chacrinha, Silvio Santos, Raul Gil, Nelson Motta, Big Boy.

Paulo Diniz estourou com "Quero voltar pra Bahia", em 1970, creio, dele e de Obidar. Confessadamente escrita para homenagear Caetano, à época em Londres. Ouvia-a muito por aí: nas rádios, TV, nos serviços de alto-falantes dos parques. Eu tinha 9 anos, gostava do ritmo, do jeito de Paulo cantar. Não entendia o sentido da letra. Parece que nem os censores.

No começo da década de 70, o general-presidente era Médici, falava-se em Milagre Brasileiro. A vida parecia boa. O moral da nação buscava ser erguido com coisas como Dom e Ravel cantando aqueles ufanismos todos ("Eu te amo, meu Brasil"); nos para-brisas dos carros o adesivo dizia: Brasil: Ame-o ou Deixe-o - aliás, quantos carros tinha, hein! Nunca vira tantos, e fabricados aqui, lá no ABC.

Mas, por que escrevo sobre essa música de Paulo Diniz?

Porque está complicado botar um arco-íris na moringa ultimamente. Qualquer tentativa de relaxar, viver um pouco a vida de maneira leve, corre-se o risco de ser chamado de alienado, conformista, ou, pior, cúmplice - por omissão - de "tudo que está aí".

Tipo uma obrigação de tomar posição, de opinar, de marcar posição, de se pronunciar, mostrar indignação, preferencialmente nas ditas redes sociais virtuais. Enche, sabe! Quando o que muitas vezes quero é, sim, tomar uma geladinha em frente à TV ou à beira da piscina. Ou brincar com minha pequena filha, tomar um picolé, ou mesmo ver um desenho de que ela goste em casa.

Errado isso? Não, mas aí você olha o celular e vê zilhões de postagens altamente "engajadas" comentando, protestando, criticando a última medida tomada ou bobagem dita pelo governante ou um de seus asseclas - ou filho...

Ou então seu "feed" é entupido com milhões de textos, vídeos, áudios com opiniões fundamentadas, dizendo aquilo que você quer dizer mas não consegue elaborar com tanta inteligência...

É a dose de opinião fundamentada necessária para seu vício em tomar posição. Sem ela, você pode se sentir isolado, sozinho nesse mundo em que: será que sou o único a me indignar com isso?

Cada dia, ou cada hora, ou minuto... uma nova polêmica. É preciso dizer algo a respeito, mostrar o quanto estou puto com isso, marcar minha posição, se possível, ganhar alguns "likes", melhor ainda se alguns compartilharem essa posição, sinal de que "mandei bem". Mundo estranho esse.

Eu estou fora. Evito isso aí. Até porque não estou com saco para entrar em polêmicas, em discussões - provavelmente com robôs - que inevitavelmente surgirão.

Prefiro, sim, botar um arco-íris em minha moringa e ficar lelé da cuca sem medo de ser feliz...

Vai o link da música.

https://youtu.be/7su1j7lnO0o

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

O que vem por aí...

Ilustração: SVG (CC)
Este blog, prestes a completar 11 anos de existência, teve várias caras desde então. Começou como um espaço de reflexões muito pessoais, tornou-se um meio de comentar as notícias do dia, resenhar manifestações artísticas que acompanhei, virou vitrine de algumas reportagens que fiz por aí e, nos últimos tempos, tentativa de difundir artistas que não frequentam muito a chamada "grande mídia".

Mas a dimensão que esse mundo virtual ganhou me deixa anos-luz atrás do que anda se fazendo por aí. O tempo é escasso para acompanhar tanta coisa que acontece e tanta coisa que não acontece mas parece ser "fabricada" para parecer acontecer.

Diante disso, vou ocupar esse canal para expor um tanto de minhas inquietações. Prefiro aqui, porque nos outros meios me sinto perdido e um torrencial de informações e impressões. E, como meu objetivo não é ganhar visibilidade, nem "likes" a rodo, apenas botar para fora o que me incomoda, retomo os escritos.

Ontem (18/02), foi exonerado um ministro, após vários dias de lenga-lenga. Os dias de cobertura jornalística do episódio foram interessantes: uma grande expectativa para o momento em que o presidente da República faria o anúncio da demissão de um auxiliar envolvido em falcatruas com verbas públicas para campanhas eleitorais, chamado de mentiroso pelo próprio filho do mandatário, que corroborou o acinte ao replicá-lo.

De um dia para outro, o assunto tomou o alto das páginas dos noticiosos em várias plataformas e formatos, passando à frente das tragédias de Brumadinho, dos meninos do Flamengo, e até das crianças soterradas em Mauá (SP). Mas jornalismo é isso mesmo; não há do que se queixar. O que me chamou a atenção foi uma reação em cadeia, ao que parece, de reiteração de apoio ao "mito".

Muitas manifestações de satisfação com o voto na figura, em resposta, creio, às também muitas postagens do tipo "eu avisei!". Se foi ação orquestrada, ou via mecanismos pouco ou nada espontâneos, a ver. Mas pressupõe o que vem apor aí.

sábado, 24 de março de 2018

Alê Vianna faz crônicas da cidade em seu primeiro trabalho solo, “Graxa”


Músico apresenta disco neste sábado, 24, no Sesc Belenzinho, com participações de Zé Geraldo e Bruno Kayapy

Alê homenageia trabalhador da arte no primeiro disco; Foto: Felipe Cretella
O músico paulistano Alê Vianna, integrante da banda Mojito Experience, com 15 anos de estrada, resolveu entrar de cabeça na carreira individual e lança seu primeiro trabalho solo, “Graxa”, com o qual busca um caminho mais profissional. No disco, a ser lançado em breve nas plataformas digitais, Alê canta temas variados, em alguns momentos falando de amor, em outros de política, mas em essência trazendo crônicas da cidade de São Paulo, seus personagens, suas histórias. O título do disco refere-se ao trabalhador da arte. “É um trabalhador falando sobre diversos temas”, define.

O Mojito, conta, foi formado em 2002, quando estudava Publicidade e Propaganda no Mackenzie, no começo como uma brincadeira, “que foi ficando cada vez mais séria”. O primeiro EP da banda só veio em 2012, “Descendo a Augusta”, e desde então vem gravando um disco a cada dois anos – depois vieram “DemoRito” e “DemoRoll” e agora, no início do ano, “Vivo em Sampa”. Alê passou a trabalhar como técnico de som, atuando com vários músicos, e sempre compondo. “Como na banda somos cinco, sempre sobrava muito material, que resolvi juntar e lançar em um trabalho solo”, explica. Ele acrescenta que decidiu seguir em frente porque os companheiros de banda têm outras profissões e acabam não podendo se dedicar integralmente ao projeto.

O disco é totalmente independente, autoral, produzido com o apoio de muita gente. “Gravamos com a ajuda de outros técnicos, os músicos também cederam seu talento investindo no projeto, muitas vezes sem receber. Estamos fazendo o trabalho de uma maneira artesanal, eu mesmo fiz a parte de gráfica, de arte, fotografia, vídeo, edição, mixagem, masterização, sem apoio de gravadora, sem financiamento de projeto cultural, um disco independente mesmo”, define.

As 12 músicas do disco seguem o caminho do Mojito, “um trabalho pop-rock, sob influência das bandas dos anos 90, como O Rappa, Gabriel O Pensador; do rock nacional, como Paralamas, Titãs, e da galera da MPB, como Gilberto Gil, Novos Baianos…”, adianta. Entre as colaborações na produção de ”Graxa” ele destaca Flávio Decaroli, “um baita de um técnico, sócio do Mingau, do Utraje a Rigor, que também deu uma força, gravou o baixo, gravamos no estúdio deles; a bateria quem gravou foi o Mário Fabre, atual batera do Titãs, enfim, um time bem de peso, o disco tem uma roupagem bem rock and roll”. A direção musical é do Fernando Kabello, que também, colaborou nos arranjos.

Como cronista da cidade de São Paulo, ele vê a cidade como um fenômeno. “Por sua dimensão, ela proporciona muitos encontros, e desses encontros tiro a inspiração para fazer as minhas músicas, a gente vive numa cidade que é feita por pessoas que vieram de fora desde sempre e isso enriquece, não precisa ir para fora para ter contato com diversas culturas”, conta. “Nos anos 90, 2000, frequentei muito forró, tive contato com essa música, contato com diversas pessoas diferentes andando no metrô, diversas histórias, de casais, personagens, muitas músicas que falam de minha própria experiência. A cidade como esse porto: tem músicas como ‘Sinais’, parceira com Tadeu Renato, dramaturgo, feita para uma peça de teatro, em que falam sobre a construção da cidade de São Paulo. Ela tem uma cadência que lembra o fado, faz referência a outros ritmos, para dar um tempero e contar essas histórias.”

O cantor e compositor Zé Geraldo divide os vocais na faixa “Cumpadi” (assista ao make of abaixo), na qual ainda colaborou com um poema que fecha a canção. Alê conta que trabalha há seis anos com Zé Geraldo, como técnico de som, viajando pelo país, e acabaram criando laços e sendo amigos. “Durante muito tempo tive vergonha de mostras minhas músicas para ele e de um tempo para cá estreitamos os laços, mostrei as músicas para ele, que gostou, e surgiu a ideia de convidá-lo para cantar na música ‘Cumpadi’, que é uma música bem humorada, de amor, que achei que tinha a cara do Zé, é tipo um ‘Xote das Meninas’ (Luiz Gonzaga e Zé Dantas) versão masculina: o cara não sabe o que está se passando com ele, fala com o compadre, que sugere que ele vá ao doutor, que diz que isso aí é amor”, afirma.




O guitarrista Bruno Kayapy, do Macaco Bong (banda de Cuiabá), toca na faixa “Bota Fogo”. “No ano passado, soube que a banda estava com um espaço em SP chamado Pico do Macaco, eles estavam organizando show cases, a gente inscrevia a banda por meio de uma planilha, escolhia a data, levava seu público, cobrava quanto quisesse, e marcamos um show do Mojito lá. Aí conheci o Bruno, começamos a trabalhar juntos, comecei a fazer a produção do Macaco Bong e convidei o Bruno para gravar  uma faixa, a ‘Bota Fogo’, que fiz durante as manifestações de 2013”, lembra.

“Um dia invadiram o Congresso em Brasília, e eu estava lá fazendo um show com o Zé na época da Copa da Confederações e lembro do Datena gritando quando tiveram as manifestações 'seus vagabundos' e fiz um refrão que diz 'prende o vagabundo, bota fogo no Congresso, sobe a audiência da TV' e o Bruno colocou a guitarra nesse som, que fala sobre o direito de se manifestar, de todo mundo falar o que pensa… Ela também é um apelo para a gente olhar um pouco mais o meio ambiente, a natureza, o ser humano conviver melhor entre eles, talvez a música mais política do disco”, acrescenta.

A respeito do momento politico atual, Alê enxerga “um cenário muito triste”. “A classe política pensa só nos próprios interesses, a gente sofreu um golpe muito duro, tirar uma presidente que foi eleita pelo voto, por um Congresso que a cada dia que passa demonstra que os interesses são sempre ligados ao capital, aos interesses individuais, das empresas, nunca os do povo. A gente agora vai ter uma eleição, mas acho que existe um controle da narrativa, acho a situação bem delicada, muito difícil ser artista neste momento”, lamenta, citando o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, no dia 14 de março, no Rio. “”ue tristeza, aonde a gente está chegando? Iindependentemente de ideologia política, uma representante eleita pelo povo sendo assassinada, uma coisa sem sentido, parece que a gente estava indo para um caminho e agora parece que estamos voltando para a idade média, é uma coisa assustadora.”

Show

Para o show deste sábado, 24 de março, no Sesc Belenzinho, Alê estará acompanhado de Fernando Kabello, que assina a direção e também estará no palco tocando guitarra, violão e bandolim; CarneiroSândalo (bateria) e Hamilton Attan Rodrigues (baixo), além de Zé Geraldo e Bruno em participações especiais. No show também serão apresentadas músicas marcantes do Mojito Experience, como “Hortelã” e “Horário Eleitoral”. A apresentação será às 21h na Comedoria, com ingressos a R$ 20 (inteira), R$ 10 (meia) e R$ 6 (credencial plena). O Sesc Belenzinho fica na rua Padre Adelino, 1.000, em São Paulo.



Alê Vianna nas redes sociais:

Instagram: @aleviannasolo

Facebook: Alê Vianna

Youtube: Alê Vianna

Twitter: @AleVianna

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Tony Babalu: um músico à moda antiga

Tony Babalu lança 'Live Sessions II', com seis temas instrumentais (Foto: Lucas Altieri)

Tony Babalu é um desses raros músicos que sabem unir técnica e alma em suas composições, resultando em obras para se ouvir com atenção, calma, sem pressa. Seu mais recente trabalho, o CD “Live Sessions II”, lançado em agosto de 2017, traz seis temas instrumentais que passeiam por vários climas do rock, funk, soul, blues, em um apanhado de suas influências e daquilo que tem escutado desde que decidiu trilhar pelo caminho da música, ainda na adolescência, no início dos anos 1970.

Acompanham Babalu (composições, guitarra e direção geral) o tecladista Adriano Augusto, o baixista Leandro Gusman e o baterista Percio Sapia.
A banda: Leandro, Babalu, Percio e Adriano (Foto: Karen Holtz)

O novo CD sucede o “Live Sessions at Mosh”, de 2014, ambos lançados pelo selo Amellis Records e distribuídos pela Tratore e “construídos a partir de uma atmosfera vintage e orgânica que norteia todas as fases de sua concepção”. Isso se traduz na escolha do estúdio Mosh, de São Paulo, que mantém equipamentos, tecnologia e espírito dos anos 70, analógicos. “Algo que quase ninguém mais tem no mundo”, define.

Mais do que nostalgia, a decisão de gravar à moda antiga deve-se à concepção de seu trabalho atual, explica. “A música que eu faço tem uma raiz no improviso, que depende muito do estado emocional que você está”, adianta. As músicas foram gravadas quase “ao vivo”, para aproveitar a sensação do momento, exigindo perfeito entrosamento dos músicos. Não há emendas, overdubs, o que significa que cada faixa é um momento único.

Nesta entrevista – talvez seja melhor chamar de depoimento – ao Blog por Bloga, Babalu fala sobre como começou a tocar, as bandas de que participou, a cena rock nos anos 70 no icônico bairro paulistano da Pompeia, suas influências, inspirações e como vê a música atualmente.
CD traz na capa detalhe da Stratocaster 1973, presente de Wander Taffo


O começo de tudo

“Comecei com música no finalzinho da década de 60 – 69, 70, por aí. Comecei a aprender a tocar guitarra. Cresci num bairro aqui de São Paulo que é tradicional no rock, Pompeia. Tem muito roqueiro aqui, é até chamada de Liverpool brasileira. Isso facilitou. Daqui saíram Mutantes, Tutti Frutti, Made in Brazil. Sou de 1953, tinha em 1969 15, 16 anos, foi aí que eu comecei mesmo, vi Woodstock, gostava muito já de Beatles e Stones e comecei a pegar gosto pela coisa.

Comecei com violão e aí já peguei uma guitarra, meu negócio era tocar guitarra, todo mundo queria tocar guitarra. A grande influência nessa época era o Jimi Hendrix, o que ele tinha feito em Woodstock jogou definitivamente a importância do rock na guitarra. Apesar de o Jimi Hendrix ter morrido em 70, foi ele, mais outros guitarristas da época – Keith Richards, o próprio George Harrison, o [Eric] Clapton com as bandas dele, a guitarra era (é) o instrumento do rock. Como o piano é o instrumento do pop, a guitarra é do rock.

Aço: primeira banda de Tony Babalu (Foto: Arquivo)
Minha primeira banda profissional foi o Aço, o baterista era Rolando Castello Júnior, do Patrulha do Espaço, que existe até hoje e que existia antes do Arnaldo [Dias Baptista], ele que entrou na Patrulha e ele tinha aquela projeção, era o primeiro trabalho dele em banda fora dos Mutantes, depois dos discos solo que ele fez, então a Patrulha do Espaço ficou associada ao Arnaldo, mas a Patrulha do Espaço mesmo era Júnior, Dudu [Chermont] e Koquinho [Oswaldo Genari], que morava aqui na Pompeia. Dudu Chermont e Koquinho já faleceram. Mas antes disso a gente tinha essa banda, Aço, que tocava hard rock, mais parecido com a Patrulha. Aí nós entramos no Made in Brazil em 74, acabou acontecendo de a gente entrar os dois juntos.”

A cena na Pompeia na época

“Na época não tinham estúdios de ensaio, essa estrutura que tem hoje, essa coisa de ensaiar pagando, você tinha que ensaiar na sua casa, não tem conversa, e os amplificadores eram paredes, enormes, não existia ainda a cultura do cubinho, do amplificador pequeno, portátil. Então você tinha que ensaiar em casas que tinham garagem, incomodava os vizinhos, e tinham focos de ensaios aqui na Pompeia. Tinha a casa onde os Mutantes ensaiavam, a casa do Made, a do Pholhas, ali na Barão do Bananal, a casa do [Roberto Gurgel] Juba, que hoje é batera da Blitz, e as pessoas se encontravam nesses ensaios e tinha muita reunião na casa dos músicos, para ouvir música.

Ouvir música era o programa completo, era suficiente. Por exemplo: chegou um disco importado do Deep Purple, de alguém que não saiu no Brasil ainda, os discos demoravam para sair, uma defasagem de um semestre, isso quando eram fabricados aqui, muitos nem saíam aqui. Um disco novo era o suficiente pra você ter uma noite, chamava os amigos e a gente fazia audições, ouvia o disco faixa por faixa, os músicos comentavam, tentavam tirar, essa era a coisa aqui na Pompeia. Era um bairro efervescente, o assunto era música, tinham muitos músicos, todo mundo escutava música como prato principal.

Hoje, a música é um complemento. Você sai de casa vê um show, um teatro, faz outra coisa. Você precisa de mais de que uma música, ela atua mais como complemento de uma festa, de uma reunião, de uma noitada, um barzinho. Nessa época a música era o principal. Era o assunto, era o tema, eram as coisas que estavam acontecendo. O Brasil também era fechado.”

O rock no contexto da época

“Em termos de comportamento, não só aqui como lá fora, aqui era um reflexo. Como não tinha uma cultura de consumo, uma indústria de consumo, a maneira de se vestir de quem curtia rock and roll por exemplo, era agressiva, cabelo comprido, calça jeans, camiseta, tênis, eram coisas que estavam entrando na cultura do dia a dia, tamancos. Não só na maneira de vestir como na forma de falar, a cultura indiana estava entrando ainda, aquela coisa de incenso, de batas floridas, de macrobiótica, toda essa cultura indiana ainda era muito nova aqui, e era associada com os roqueiros.

Agora o regime político era fechado, era uma ditadura, e tudo que era fora do sistema incomodava. Então você corria o risco de ser hostilizado na rua pelo seu cabelo, você não podia fazer reuniões, juntar dez, 15 pessoas como se faz hoje porque a polícia ia lá ver se ali não tinha um foco subversivo, ou comunista, então as coisas se misturavam. Você veja: o rock é uma cultura da sociedade de consumo americana, ocidental, americana, inglesa, não tinha a ver com a esquerda política, por exemplo, mas no comportamento sim, na atitude, sim, era uma cultura de rebeldia e das artes, em geral.

Tinha, sim, que enfrentar sempre a sociedade, sempre explicar por causa da associação muito forte com o visual, o visual era muito fora do sistema. Você confronta o sistema, mas o que você propõe? Seria a pergunta. E não tinha uma sociedade de consumo.

A coisa começou realmente a abrir, melhorar, no meio da década de 75 para cá, quando o rock começou mesmo a entrar na cultura da música: Rita Lee, com 'Ovelha Negra', foi um dos primeiros discos do Tutti Frutti que rompeu a barreira mesmo, entrou com música em novela, e aí as coisas começaram a acontecer de maneira diferente. Quando eu comecei era bem apertada a coisa.”

O papel do rock na rebeldia jovem


Made in Brazil: grupo que está completando 50 anos de estrada e com o qual Babalu gravou 4 discos (Foto:  Divulgação)


“Desde o movimento da Tropicália, que não era rock, era uma confrontação ao padrão da MPB, desde esse final dos anos 60, do Tropicalismo para cá, o rock and roll era associado com a juventude rebelde, tem aquele fundamento político, mas não política de Estado, de regime, a política familiar, o conflito de gerações, que era o motor, o pavio da irreverência, da maneira de ser (‘eu não quero ser que nem meu pai, não quero fazer 40 anos’), aquela época do movimento da contracultura, hippie, amor livre, uma cultura antiguerra, os ídolos eram Jane Fonda, Peter Fonda, de filmes como “Sem Destino”.

Era tudo uma contracultura, contra aquela cultura estabelecida pelos padrões da sociedade ocidental, principalmente europeus da Inglaterra e dos Estados Unidos: a maneira de se vestir, a obrigatoriedade de você ter uma religião, de casar, todas essas regras rígidas de comportamento da sociedade. Por isso que eu digo que o rock está inserido num contexto de conflito de gerações, entre a moralidade da sociedade conservadora e uma sociedade liberalizante através da música.

Era isso, não tinha a questão política. Embora caminhasse no mesmo rumo das questões políticas, da contracultura na arte, dos regimes políticos alternativos, como o comunismo, o marxismo, o socialismo... toda essa cultura política de esquerda também acontecia na mesma época, mas a coisa da música, do rock, ela estava mais centrada no conflito de gerações: ‘eu não quero ter a vida que meu pai tem, por exemplo’, obedecer à mesma sociedade de consumo, ter a mesma situação, ou eu quero ser livre, entre aspas, viver sozinho, morar com uma pessoa sem casar com ela, romper essas regras de comportamento.

Aí que eu acho que a música, que o rock se insere. Meus pais deram um espaço muito grande, eu conheci Suzi aos 15 anos; eu não sofri internamente o conflito de gerações porque eu tive pais que realmente não se importavam com isso, não eram preconceituosos, conservadores, autoritários, sempre aceitaram as coisas numa boa, mas a música era basicamente uma tentativa de se expressar, de criar um padrão próprio de comportamento que não fosse aquele padrão certinho, politicamente correto que hoje está voltando a ser, mas aquele politicamente correto chato, moralista.”

Aprendendo a tocar

“Eu fui estudar violão com uma professora que era [a professora] da minha irmã, ela comprou um violão e largou mão, aí eu peguei o violão, a professora e comecei a ter aula, ela começou a me dar os primeiros acordes e quando eu comecei a aprender a tocar ela quis me passar ‘Meu limão, meu limoeiro’, aí foi a última aula. ‘Não é por aí’. Mas eu já sabia alguns acordes, a partir daí eu fui sozinho. Autodidata, de ouvir discos, tirar a música, tentar fazer como estava no disco e aí o ouvido ajudando, com amigos, assim que eu aprendi a tocar, com muito pouca teoria.”

Discos que influenciaram


O 'disco da banana': 1º álbum com o Made in Brazil


“Foram vários. ‘Revolver’ (1966), do The Beatles, aos 12, 13 anos; o ‘disco do bolo’ dos [Rolling] Stones – ‘Let it Bleed’ (1969) foi outro, mas aí a coisa realmente começou a ficar forte com o último disco do Jimi Hendrix, chamado “Band of Gypsys” (1970), com Billy Cox (baixo) [mais Buddy Miles, bateria), um disco ao vivo de 1970, e aí eu ouvi aquilo e disse, ‘vou tocar guitarra’, e fui atrás.

Um disco que também me marcou foi do Steppenwolf, na verdade mais uma música em um disco que tem ‘Born To Be Wild’, ‘The Pusher’, um disco de 68, 69. Depois vieram os discos clássicos, mas esses ainda são anteriores àquela famosa trinca que veio nos anos 70 – Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabbath. Esses, mais Grand Funk, Santana, todo o pessoal que tocou em Woodstock – The Who... Isso é tudo a formação básica.

O disco que me fez querer ser músico digamos que tenha sido o “Revolver” e o “Let It Bleed”, e também o “Beggars Banquet” (1968) do Rolling Stones; agora o que me levou a querer ser guitarrista foi o Jimi Hendrix. Eu era muito novo, e não conhecia, tinha 16 anos; quando eu conheci o Hendrix, esse disco, ele já tinha morrido. Woodstock (o filme) nem tinha passado aqui ainda. Ele morreu em 70, quando eu ouvi o disco ele tinha acabado de morrer praticamente, ele morreu em setembro de 70 e o disco saiu aqui no final de 70 começo de 71.”

Na estrada

“O Aço era um trio, não tinha música própria, a gente fazia o repertório dos outros, como The Who, Grand Funk. O primeiro disco que gravei foi com o Made in Brazil, o da banana, tenho até uma música nesse disco, a “Intupitou o Trânsito”, minha única parceira com o Oswaldo e o Celso [Vecchione], as outras músicas que eu tenho no Made são parcerias com o Oswaldo. Foi gravado em 1974.

Aí eu gravei os quatro primeiros discos do Made in Brazil, a fase dele na gravadora RCA: o ‘Made in Brazil’, homônimo, foi o primeiro, o Júnior [Rolando Castello Jr] participou desse disco, Cornelius [Lúcifer] é o cantor, um grande vocalista, que fez muita história, falecido há uns dois, três anos, aí teve ‘Jack, O Estripador’ (1976), ‘Pauliceia Desvairada’ (1978), que foi o disco em que tive mais participação como compositor, e o ‘Minha Vida é Rock ‘n’ Rol’ (1980), que foi o último que o Made fez por uma gravadora grande, convencional, depois viria a fazer outro, o ‘Deus Salva... O Rock Alivia’ (1985).

Eu continuei participando, mas já foi diminuindo de intensidade. Em 1980 eu participei do Festival Shell de MPB, da TV Globo, com a música ‘Cidade Louca’, e uma banda chamada Artigo de Luxo, fiz um disco com o Artigo de Luxo e essa música, mas a gente parou na primeira, não fomos classificados para as finais do festival. Aí entrei no Quarto Crescente, que o Percy [Weiss], ex-vocalista do Made in Brazil me chamou para fazer, tenho um disco com eles de 1981, fiquei até 85, 86, depois fiz outra banda, chamada Bem Nascidos e Mal Criados, que não teve disco, mas tocamos em todos os lugares alternativos, era uma banda com duas cantoras, mais punk rock. Toda essa produção mais tocando, não cantando.”

A fase instrumental

“Resolvi entrar mesmo no instrumental nos anos 2000, mais especificamente depois de 2010, que eu lancei esses dois discos. Nesse tempo eu fiz muita coisa como produtor, continuei tocando com o Made, até hoje eu toco, a banda está fazendo 50 anos e de vez em quando eu vou e faço uns shows.


Entre 2010 e 2012 formamos a Betagrooveband, com a Marina [Abramowicz] na bateria e um baixista que hoje está morando em Portugal, PV Ribeiro; fizemos um show até importante, que foi a comemoração dos 30 anos do Centro Cultural São Paulo, tem três vídeos desse show na internet. É uma banda que tem um repertório muito legal que eu ainda quero gravar em disco. É uma proposta de trio com uma cara mais antiga, mais de Cream, mais pesado, um som mais pulsante, mais para rock mesmo, funk rock, uma coisa mais forte mesmo, diferente dessas duas propostas que eu estou fazendo com o quarteto, que é um som mais maduro, de climas.


Eu sou uma pessoa que escuto de tudo. Eu toco rock and roll, mas gosto de funk, o funk com tradição do soul music, mais black mesmo, sou uma pessoa muito eclética com música, escuto bandas pop, sofisticadas, complexas, como Steve Miller Band, como o trabalho do Sting, o Weather Report, uma banda clássica de instrumental, da mesma forma que eu escuto Stones, Muddy Waters, John Lee Hocker, Chic, do Nile Rodgers, sempre gostei muito.

O Chic é uma disco music com uma proposta dançante, onde a guitarra faz uma coisa rítmica muito particular, e o tipo de coisa que o Nile Rodgers fez foi de romper fronteiras na música, porque com ele os temas começaram a ser feitos para discoteca mesmo nos anos 70, então tem aqueles temas longos, onde fica muito tempo sem acontecer nada, aquela pulsação em cima de um riff de baixo. Tanto é que uma das músicas do Chic da época, 'Good Times', foi uma das primeiras músicas de hip hop, os caras já começaram a fazer colagens, quer dizer, uma coisa influenciou a outra na música.

Então como eu sou uma pessoa de escutar muito, ecleticamente, o que eu mais gosto, que não sai do toca-discos, é o básico do rhythm and blues: Eric Clapton, Stones, e variações do classic rock, ZZ Top. Mas eu gosto de Police, outras coisas, e o resultado disso é que de repente durante muito tempo eu fiz músicas com bandas vocais, com cantor, com letra, e de repente caí na música instrumental assim nos anos 2000 pra cá.

Teve um primeiro disco feito em casa, chamado ‘Balada na Noite’ (2003), sem banda, em casa mesmo, com tudo eletrônico, mas já instrumental. Fiz um show no MIS em um projeto de música instrumental em 2007; a coisa foi meio que naturalmente se encaixando. Em princípio, não era a ideia de ser meu trabalho principal, mas acabou acontecendo de começar a dar certo, começaram a surgir temas instrumentais, em cima de tudo que eu ouvi e tocar como músico, pegar a guitarra e não se preocupar com a letra, com arranjo, com cantor, com a métrica da música, com tocar em rádio. Quando eu dei essa relaxada eu caí na música instrumental e falei ‘aqui é uma delícia, toco o que eu quero, faço o que eu quero’, e estou nessa e acho que vou ficar nessa muito tempo.”

O processo de criação

A Fender sempre por perto para captar a inspiração (Foto: Carlos Mercuri)

“O tema sai aqui em casa, geralmente. Eu mesmo construo uma base para mim mesmo, eletrônica, baixo, batera, teclado num estúdio que eu tenho, das antigas também, monto essa base com esse riff, essa melodia, e começo a fazer a melodia em cima e preparo para os arranjos, faço um arranjo básico da música inteira, fecho a música tudo sozinho, gravo para a banda a minha parte de guitarra tocando e a parte deles sintetizada, bateria eletrônica, baixo, só para eles saberem a harmonia e a grade da música.

Aí que a gente começa a música para valer. Mando aquilo para eles por internet, passo os links, eles ouvem, tiram e vamos ensaiar. Chegamos para ensaiar e aí é outra música. Porque você parte dali e aí cada um começa a pôr suas coisas, seus climas, a música começa a sair lá, mas a massa, a grade, a harmonia saem daqui.

Lá a gente começa a trabalhar e ela cria a forma final. Aqui ela tem três, quatro minutos, às vezes ela tem um minuto, é uma levada, um riff, e lá ela ganha a forma final. Mas como é baseada em improviso, porque eu tenho um sistema de trabalho – que acabou acontecendo naturalmente também – que é muito diferente da grande esmagadora maioria: que é aquela coisa que a música tem muitos trechos em que vale o que tiver na hora, se você tocar duas vezes a mesma música não vai sair o mesmo solo, não vai sair o mesmo teclado exatamente, não vai ser a mesma virada de batera; a gente improvisa e cada hora é uma leitura, tem grades, tem situações, convenções na música, melodias principais, e tem a largada pra solar, aí o que vale é o que acontece.

Tradicionalmente não se faz assim. Se faz um disco como: você vai, grava num estúdio, vai a bateria, aí você vai colocando a guitarra, outro instrumento, volta, faz overdub, põe duas, três guitarras, põe vários efeitos, várias coisas, vai fazendo, é um trabalho de pintura que você não faz em um dia, porque em um dia você grava a base. A minha maneira de gravar é completamente diversa disso, porque a gente já chega com as coisas e grava ao vivo.

Tem aquela coisa de ser uma pintura da hora, daquele momento. Nós fizemos vários takes, para aprovar um deles, não é aquela coisa de teve um erro um take, volta ele inteiro, não é consertar o erro na máquina, então a música tem dez minutos e se fosse fizer um erro, alguma coisa que não passa na guitarra, todo o take vai ser refeito. Quer dizer, um músico depende do outro nessa questão, isso faz com que a banda comece a ter uma integração, vale muito o emocional da hora que você está gravando. Escolheu o take, aí o resto que você mexe é no timbre, não nas notas. Não acrescenta mais nada nem tira mais nada o que está lá.

Essa forma de gravação é uma forma que é inusitada. É simultâneo, ao vivo. Por isso gravamos no Mosh, é um estúdio assim, que tem um equipamento que quase ninguém tem no mundo. Eles têm as máquinas, as mesas, os compressores, é um equipamento ainda dos anos 60, restaurado, com válvulas novas. É toda aquela atmosfera. Eu gravei o disco como se eu estivesse nos anos 70 mesmo. O Mosh tem esse equipamento, ele não acha aquele som no computador, ele acha aquele som no ampli da época, com válvula, com microfone, por isso tem esse sabor, porque o estúdio tem essa cultura também.

Esse que é o conceito dos dois discos, seria analógico. Tem aquela coisa de quem gosta dos discos de vinil ainda. É como se eu estivesse hoje fazendo a música dos anos 70. Isso não é algo que foi pensado para ter um diferencial, isso aconteceu por causa do que eu vivo mesmo.”

Diferenças entre os processos

Eu gosto dos dois [processos de gravação], eu gosto também da tecnologia, muito, para escutar. Mas para fazer, nessa proposta de trabalho, a música que eu crio prefiro fazer na moda antiga. Eu já trabalhei nos dois, tudo que eu fiz de gravação foi mais nesse processo de fazer compartimentadas as coisas, fazer sucessivamente, não simultaneamente.

Eu gosto também, é algo mais cerebral, que não necessariamente é frio, têm muitos resultados que você ouve e tem a impressão de que é vivo, a coisa realmente é quente, não perde a pulsação, mas é uma questão de opção, para eu fazer tocando guitarra prefiro fazer a coisa simultânea porque a música que eu faço tem uma raiz no improviso, que depende muito do estado emocional que você está. Você tem um padrão, obvio, mas, dependendo do estado emocional, do momento de sua vida, você coloca ali uma coisa que tem que ser ali na hora que você está sentindo a música ser executada por todos.

Nesses dois trabalhos que eu fiz no Mosh, pelo conceito do trabalho tem que ser simultâneo, tem que ser ao vivo, não veria de outra forma. Mas isso não quer dizer que eu não possa fazer um trabalho e gostar de fazer um trabalho nesse processo tradicional de gravação, porque é uma obra de arte com um processo de registro diferente, e é legal também. Mas isso pode mudar também.”

A música hoje em dia

“O que eu percebo é que tudo ficou extremamente segmentado, a oferta de música é escandalosamente maior, não só de música, como de informação, e não só em relação à música, mas também às artes, a tudo. A oferta é grande demais, a internet, a velocidade de processamento da informação cresceu tanto, a informação é tão rápida e tão abundante que tudo fica segmentado.

Então se você pegar a música agora tem 15, 20, 30 vertentes sendo consumidas ao mesmo tempo. São zilhões de bandas novas, artistas, trabalhos novos em todas as áreas da música, tudo disponível com qualidade HD, tudo fácil de ser corrigido, se você não canta bem, não toca bem tem um programa de computador que resolve a sua situação, então eu acho que a música caminha para a música ao vivo, para apresentação ao vivo, porque você está vendo a pessoa fazer aquela música na hora, aquilo passa a ser a única maneira autêntica, o resto que você escuta não sabe se é uma máquina que está tocando, se aquilo foi corrigido, se saiu de um ser humano, da cabeça do ser humano.

E a tendência é ficar assim. A própria música está sendo diluída pela oferta muito maior do que a demanda. Tudo é over hoje em dia. O que seria uma novidade? É um produto de consumo que não é só necessariamente a música. Hoje um artista de sucesso, um músico de sucesso tem, além da música, a coreografia, a dança, a imagem, a opinião, a atitude, como ele se expressa, que posição política ele tem, o que ele propõe, ele tem um monte de coisas que não têm a ver com música, que são o componente da indústria em que tudo é vendido, tudo é misturado em um conceito só e a música é um elemento; às vezes a música não é forte, mas o que entorna ela é. Então você vê uma coisa espetacular, mas tudo gira em cima da música.

Tudo ficou muito segmentado, muito compartimentado, e é difícil se encontrar nesse mar de informação para eu dizer o que realmente é uma novidade em conteúdo. Eu acho que o caminho da música, ela tende a ser valorizada quando ao vivo. Você vê o músico executar aquilo na sua frente, tem um contato físico com a música, não através da imagem, nem sequer do que você escuta no fone de ouvido, que passa a ser uma trilha para sua vida. Agora se você quiser ter contato com a música tem que ver o músico ao vivo, é a única forma de você ter um contato com a música na sua raiz pura, música pela música, pela construção, pela expressão da música.

Fora isso você está vendo um produto manipulado, que não necessariamente é ruim, mas que não é autêntico, não é cem por cento música, às vezes não é nem 50% de música. Você está vendo um produto que foi pensado, foi feito e você não sabe até que ponto a parte humana, fisicamente, tem de participação naquele produto. Claro que qualquer produto é humano em última análise, mas o que você está ouvindo, quem fez, foi um músico? Ou foi um músico que pensou e aquilo foi feito por uma máquina E isso já dá uma grande diferença.”

Espaço para música ao vivo

“Os espaços sempre foram o grande problema da música e das artes em geral. Nós estamos ainda em uma época de transição. Por exemplo: em 2008 não existia Facebook, de cinco anos para cá que você começou a ver vídeos, e o que você via no computador passou para o smartphone, isso há três, quatro, cinco anos. E isso praticamente foi um golpe mortal em coisas como fotografia, música. Isso afeta também a coisa do espaço, porque você passa a ter a vida no seu smartphone, então ficou difícil. Você tem alguns espaços alternativos, tradicionais, acho que sempre vai haver espaços, o que eu questiono é se com o tempo vai continuar a ter gente que sai só para ver música.

Por exemplo, hoje em dia a música não se faz mais em teatro. São poucos os espaços tradicionais para você realmente ter aquele contato com a música ao vivo. Isso é realmente um problema, porque os espaços passam a ser espaços onde a música não é o principal, é um complemento, que são os barzinhos, para o dono do bar interessa você entrar lá e consumir, beber e comer, o que ele coloca para você assistir é o gancho para você entrar, comer e beber.

Então tem várias outras coisas que não são música e que lhe atraem lá: o ambiente, a possibilidade de conhecer alguém, a maneira como você é tratado pela casa, a comida... Dentro de todo esse cardápio aparece a música e em muitos lugares nem isso, não tem nem a música. Então a gente não pode considerar isso um espaço para a música. O espaço para música deveria ser só para música, você entrar e assistir a um show.”



Como se ouve música hoje

“A quantidade de informação, do processamento de dados: quanto mais diversidade você tem na mão, mais você pode escolher, zapear, no próprio smartphone, e você está tão acostumado a ter um leque de opções que o tempo se comprime, você não fica em nenhuma, está sempre pulando.

Qualquer coisa que tenha cinco, dez minutos na internet é uma eternidade, não consegue ficar muito tempo numa coisa, porque todo mundo está publicando sempre alguma coisa, você nem precisa ir atrás de informação, elas vêm, sejam elas fake ou não. É tanta informação que acabou aquela coisa de você parar em alguma coisa como você saborear uma taça de vinho, ouvir um disco inteiro se torna raro.

Hoje se você consome na internet uma música, se você gosta de uma música você vai lá no iTunes e baixa a música, se gosta de três, para que você vai ter um disco inteiro se você só ouve no Spotfy. Se você quer ter o disco inteiro você baixa e deixa ali no seu pen drive, no seu iPod, o conceito de um disco, que tem 80 minutos ficou sem sentido.

Então o artista hoje lança músicas, não lança álbuns. Ainda existe o álbum, mas já virou uma espécie de catálogo, de brinde, de currículo do artista, o CD físico. E no futuro vai ser mais ainda, mas as pessoas ainda obedecem ao conceito de álbum mais como eco de que sempre foi assim, mas não tem motivo. O conceito de fazer um CD de 40 minutos - agora acabou de sair o CD do Chico Buarque - é um conceito aprisionado à quantidade de informação que cabe num CD físico.

Então o suporte físico ficou sem razão de ser. Estamos vivendo ainda um eco. Antes o artista tinha que apresentar um trabalho e não tinha essa rapidez. Se você quisesse ter acesso à obra de um artista você tinha que comprar o CD, tenha que ter o aparelho para tocar, hoje você não precisa carregar nada. Se não quero estar sempre conectado pode baixar e guardar em algum arquivo de memória, um MP3, e ouço offline. Então essa coisa física é que ainda dá suporte, e daqui a 50 anos, quem está nascendo dá valor pra CD?

Acho que ondas e ondas retrô [como a volta do vinil] vão existir sempre, mas o que vence no fim é a praticidade. O cara vê o vinil como uma novidade, começa a comprar, mas o vinil ocupa espaço físico e os apartamentos hoje em dia são de 40 metros quadrados.

Já não combina, o mundo segue para pouco espaço, otimização do espaço, nem HD externo, isso está sendo posto em cheque também, as pessoas estão colocando os back ups, as coisas importantes, tudo em nuvem. Nós ainda somos uma geração que viveu o analógico, e daqui a 20 anos? Que mundo que as crianças de hoje vão receber? Estamos ainda numa transição. E as crianças de agora? E daqui a 50 anos?

Eu parei no meu tempo, não é que eu acompanhe, que eu tenha raiva do mundo moderno, acho tudo muito legal, uso as coisas, mas eu acho que o conceito de disco, de álbum, de obra e até mesmo o conceito de artista já é uma coisa misturada no meio de milhares de informações, montanhas que você tem; é difícil você fazer alguém fiel, e vai ser ainda mais difícil daqui pra frente, porque você pega uma garotada aí e onde eles vão se apoiar?

Vejo a garotada aí descobrindo Beatles, achando uma maravilha, baixa toda a coleção, fica seis meses ouvindo, e depois acabou, porque é uma coisa finita, mas que viveu 13, 14 anos sem saber o que era. É muita coisa, e hoje as pessoas não querem perder tempo, é tanta informação que a pessoa é condicionada a escolher toda hora: o que eu faço, onde eu gasto meu tempo.

Fora isso a informação vem atrás de você pelo WhatsUp. Claro que isso – o excesso de informação – vai levar as pessoas a valorizarem, por isso que tem esses movimentos retrô, elas começam a descobrir o valor.”




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