O Barquinho Cultural

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sábado, 7 de abril de 2012

E o palito afundou

Estive dia desses no famoso Bar Léo, reduto dos apreciadores do bom chope, bem tirado e na temperatura correta, no centro de São Paulo, mais precisamente na região conhecida por Boca do Lixo (rua Aurora), com algumas pessoas do curso de fotografia, ávidos por uma boa conversa e matar a sede após uma saída fotográfica na Pinacoteca e arredores. Foi a primeira vez que estive nesse bar, mas a vontade de lá ir sempre me invadiu, pois as referências que dele tinha eram as melhores. Gosto de frequentar os pontos tradicionais da cidade de São Paulo, como o Ponto Chic, Moraes, Mercadão da Cantareira, bar Estadão, feira do Pacaembu, Frangó, por saber que são locais que, a despeito de todas as modificações gastronômicas por que passa a cidade, incorporando hábitos que são muitas vezes importados de outras paragens, mantêm seu cardápio, pois sabem que a freguesia fiel vai lá exatamente por isso.

No bar, naquela noite de terça-feira, estranhei o local estar bem vazio. Sempre li e ouvi que era quase impossível arranjar lugar para sentar no tal boteco, e os donos há tempos providenciaram balcões na calçada para atender aos que não tinham oportunidade de sentar às mesas internas. Pedidos os chopes, notei o colarinho correto, cremoso, a cor cristalina, o copo devidamente limpo. E comentei com o pessoal - todos muito jovens, observe-se - as características que fazem a fama do bar. Não sou mestre cervejeiro, daqueles que identificam em um trago a qualidade do líquido. Mas o sabor me pareceu um tanto estranho. Mas, vamos lá. E, para demonstrar meu (parco) conhecimento da arte chopeira, falei aos colegas do teste do palito, que ouvi há muito tempo. Não sei se é mesmo verdade, mas diziam que, para verificar se o chope foi bem tirado, deve-se mergulhar um palito no colarinho. Se ele permanecer imóvel, foi devidamente cortado. Mas, se descer, foi tirado de maneira incorreta.

Bem, fiz o teste. E o palito desceu e sumiu. Fiquei com cara de bobo, imaginando que talvez teria entendido errado o teste. As pessoas me questionando a respeito. Minha reputação de conhecedor caiu por terra. Mas tudo na boa, afinal, o importante era estarmos em um bar respeitado da cidade e sorvendo uma bebida de qualidade reconhecida há quase 70 anos. E fiquei quieto quanto ao meu repertório de boêmio.

Qual não foi a minha - e a de muitos paulistanos e muitos brasileiros de outras plagas - surpresa e indignação ao ler nos jornais dias depois que o bar tinha sido interditado por vender chope de baixa qualidade sem avisar aos clientes, fazendo-o passar pelo Brahma (e cobrando-o como)? Um apreciador contumaz, estranhando o sabor da bebida, chamou a polícia e foi descoberta a sacanagem. Vários barris de outra marca foram encontrados no depósito. E, pior, havia comida vencida no local. Decepção. Trauma. Sensação chata de ser feito de trouxa.

O bar Léo foi fechado por uns dias, não sei se já reabriu. Mas a imagem foi arranhada. Será difícil reaver o prestígio. O consumidor não gosta de ser enganado, ainda mais quando ele estabelece uma relação de carinho com o fornecedor, seja lá do que for. O que me angustia é a falta de respeito, além de com o consumidor, com as tradições, em nome do lucro rápido. Li que quem comanda o botequim agora são herdeiros do dono que lhe construiu o nome e fama. Acho que faltou a esses novos administradores a percepção de que aquilo que se obteve com anos de trabalho decente deve ser preservado. Se havia dificuldade de manter o negócio, há muitas outras maneiras de se atrair mais clientela, mas a pior é enganar as pessoas.

Fica em mim a sensação de que os valores são coisas que perderam um tanto de sua importância, que a lógica do mercado se sobrepõe a eles, e o vale-tudo está cada vez mais presente nas relações humanas, sejam elas de consumo ou de afeto. Exemplos não faltam. O metrô paulistano era considerado, tempos atrás, o melhor meio de transporte da cidade, limpo, organizado, pontual. Hoje o que se vê é total desrespeito ao usuário, que se espreme e faz verdadeira ginástica para entrar na composição. Vão dizer que aumentou exponencialmente o número de pessoas que o utiliza, ok, mas e o investimento para atender à nova demanda?

Em mim ainda fica uma certa angústia de perceber que a vida está cada vez mais complicada, que o crescimento desmedido da cidade torna o fruir das coisas que nos agradam mais difícil, que para se ter algo um pouco mais qualificado se deve pagar muito e, assim, se segmenta cada vez mais o acesso, alargando o abismo social tão notório em nosso mundo. É triste.

Mas nem tudo está perdido. Fomos sexta-feira, 06/04, no bar do Alemão, outro reduto tradicional da cidade que ainda não conhecia. Atendimento correto, chope bem tirado, música de altíssima qualidade (se bem que alta demais, atrapalhando a conversa). Reencontrei lá o músico Eduardo Gudin, que há tempos não via tocar, desde o histórico show com Vânia Bastos, com quem gravou um LP sensacional. Achei-o meio acabado, magro demais, a idade cobrando seu voraz tributo. Mas o violão continua um primor. Agradeço aos amigos Regina e Antônio pela dica. E ainda encontrei lá o camarada Lela e Célia. Eles sabem das coisas.