O Barquinho Cultural

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quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Ao correr da pena


Era um menino solitário, gostava de inventar músicas, criar brinquedos e enterrar coisas no jardim (ferramentas, talheres, até um pobre de um franguinho, sem saber, contudo, que o bichinho morreria). Detestava cortar cabelo, tomar banho, calçar sapatos e comer coisas como beterraba, abobrinha, mandioquinha e cenoura. Leite, nem pensar (tive raquitismo e tomei isso até enjoar). Falava sozinho (até hoje). Desenhava garatujas que expressavam aquilo que gostaria de ser (um cara fortão – por causa do raquitismo, fui um menino magricela e frágil -, guitarrista, cabeludo e cheio de charme). A escola era um martírio, porque tinha de interagir com desconhecidos e pessoas que representavam, à época, a autoridade constituída (professores, diretores, bedéis).

A infância, até onde a memória pode alcançar, foi bonita, dentro do estrito círculo de conforto que me deixava em paz; sair dessa área me aterrorizava. Tinha poucos amigos na vizinhança. Lembro-me de um casal de irmãos nisseis de quem gostava muito. Os vizinhos de muro eram muito arruaceiros, e me intimidava sua rudeza, piorou quando sem querer fiz um talho com a tampa de lata de goiabada que joguei ao ar para ver voar e, azar, atingiu o rosto de um menino. Castigo no quartinho de passar de minha mãe. Nunca vira tanto sangue antes.

Sem noção, quase incendiei a edícula de casa ao atear fogo a um monte de folhas secas de bananeira que estava jogado junto à parede. Medroso, saí de fininho e me escondi. Por sorte, extinguiram-se logo as chamas, mas as labaredas subiram tão alto que o susto foi enorme. Outra ocasião, brincando de cigarro, quase queimei minha própria cara ao acender uma folha de caderno que enrolei e pus na boca, fingindo fumar, para imitar o meu pai.

A mãe passava roupas na edícula ouvindo rádio, músicas dos anos 60 que até hoje me lembro. Uma de minhas favoritas era uma versão em português do Hino ao Amor, de Edith Piaf, que, anos depois, ao ouvir no original, me deixou emocionado. O rádio foi o primeiro meio de comunicação a que tive acesso, antes mesmo da televisão, que entrou em casa tempos depois, e provocou tanta briga com minhas irmãs. Disco sempre houve em casa, meus pais gostavam muito de música e tinham uma coleção razoável, a maioria de orquestras, bandas marciais. Coisas como Ray Conniff, Românticos de Cuba, Lafayette, bandas da Polícia Militar, da Marinha, por aí.

Em visitas à casa de minha avó materna, tive contato com revistas femininas, de uma prima minha de quem não tenho notícias há anos. Eram revistas que cobriam a vida de artistas de rádio e TV, cantores, algumas de moda, como uma tal de Burda (achava gozado o nome), fotonovelas. Curioso, rasgava as fotos das moças na esperança de ver o que havia por baixo dos vestidos. Meu tio Mário era leitor de almanaques, e quando Chico Buarque lançou, nos anos 80, um disco com esse nome, ele me soou extremamente familiar. Fiquei um tempo viciado em palavras cruzadas.

O vício seguinte foi baixa literatura. Devorava livrinhos de faroeste e de espionagem vendidos em bancas de jornal, em papel ordinário e formato de bolso. Antes de consumir gibis, era isso o que eu lia. Esses romances me estimulavam a brincar de caubói e espião, e criava minhas histórias e as encenava em casas em construção na vizinhança, nos matagais e nos campinhos onde se jogava futebol. Eu nunca joguei; preferia caçar saúvas com hastes de capim-gordura a ficar correndo atrás de bola e tomar caneladas.

A família era engraçada, grande, diversificada. Os natais eram animados, cheios de comidas, algazarra, a italianada típica, falando alto, brigando, soltando maledicências. Eu, observador, tentava entender cada um deles, mas sem me envolver. Mantendo um certo distanciamento crítico – sem o saber, claro. Que eu me lembre, não havia interação entre os parentes de minha mãe e os de meu pai. Não me recordo de evento que tenha juntado as duas famílias.

Os fins de semana em que não íamos ao zoológico, à praia ou ao parque de diversões, eram de visita às avós, tios e primos. Não brincava muito com os de minha idade. Gostava mais de ficar junto aos adultos ouvindo suas histórias e queixas. O problema era que os primos eram mais fortes e gostavam de me bater e as primas não curtiam muito a presença de um menino em suas brincadeiras de casinha e de bonecas. Mas às vezes rolava uma roda, um pega-pega, esconde-esconde, e eu podia participar.

Gostava de subir em árvores, muros, telhados, postes, e brincava de avião, fingindo pilotar. Uma goiabeira na casa da mãe de minha mãe era minha preferida. E lá passava horas, isolado, com a cabeça nas nuvens, imaginando viagens sem fim. E a imaginação corria solta. Tanto que muitas vezes me perdia ao andar com a família, ou caía no córrego por não prestar atenção no caminho. Me perdi muitas vezes, por ter um precário senso espacial que até hoje me é deficiente. Mas sempre me acharam, pois o medo me impedia de ir longe demais.

Quando chegou a época de ir à escola o terror se apossou de vez de mim. E, sem o saber, eu tinha motivos para isso...