O Barquinho Cultural

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sábado, 22 de junho de 2013

A pauta necessária

Fonte da foto: http://www.bancariospb.com.br/index.php/notcias-mainmenu-138/notcias-do-sindicato-mainmenu-92/16703-cut-divulga-nota-em-defesa-da-democracia-e-repudia-acoes-violentas

Tenho 52 anos, comecei a me interessar por política - no sentido amplo, não a sua prática institucional, qual seja, a atividade partidária - tardiamente, lá pelos 18, 19 anos, ainda prestando o serviço militar. Acho que já comentei aqui, se não, vale a pena mencionar. À época, 1980, o país vivia um momento turbulento, com o último dos generais-presidentes, João Baptista Figueiredo, enfrentando uma sucessão de greves, desencadeadas dois anos antes, devido ao fracasso do tal "milagre econômico", recessão, inflação. A resposta do general foi, mesmo sob o manto da "abertura lenta, segura e gradual", iniciada por Geisel, reprimir esses movimentos, intervindo em sindicatos, destituindo diretorias e prendendo dirigentes.

Pois bem. Os metalúrgicos, com o sindicato tomado, sem receber salários por causa das paralisações, constituíram, em São Bernardo do Campo, o Fundo de Greve, que previa angariar contribuições para os trabalhadores sustentarem suas famílias durante as greves, mas acabou também se tornando um lugar para discussão e organização, uma vez que o espaço físico do sindicato havia sido subtraído da categoria. A paróquia em frente à minha casa era um desses espaços, mas, aos 18 anos, eu pouco me interessava pelo que estava acontecendo ali, apesar de meu pai e vários tios e primos serem operários das montadoras do ABC.

Estava eu uma vez por ali, à toa, quando dois sujeitos saem de um carro e me abordam. Como estava com o cabelo raspado ao estilo reco, penso que os caras, sem dúvida agentes de algum órgão policial, imaginaram que eu teria o dever cívico e patriótico de colaborar com a repressão. Fizeram-me perguntas a respeito de que tipo de movimentação eu vinha observando ali na igreja, se havia reuniões, que tipo de gente frequentava etc. Respondi que não sabia de nada, que não prestava atenção ao que acontecia ali, pois nem católico eu sou. Eles disseram para eu ficar de olho e anotar qualquer coisa, pois eles voltariam para saber. Nunca mais os vi. Mas algo ali não me cheirou bem e me deixou inquieto.

Pouco depois, com a greve dos metalúrgicos intensificada, passamos pelo Paço de São Bernardo, onde os trabalhadores faziam assembleia. Estava em um caminhão do Exército, repleto de recos, em direção ao local onde treinávamos tiro. Ao passarmos pela multidão, senti a tensão, o ar pesado, os trabalhadores temendo que estivéssemos ali para descer o pau. Não era isso, mas, no quartel, o comando avisou que a tropa deveria estar em estado de alerta, pois poderia ser requisitada a qualquer momento para agir, se a situação devida ao movimento grevista degringolasse. Isso significava, em termos práticos, ficar com a farda passadinha e as botas brilhando de lustre ao lado da cama, pois, se fôssemos convocados, era preciso ir logo.

Minha sensação era esquisita. Imaginava-me tendo de pegar o fuzil e ir para cima dos trabalhadores, o que significava reprimir a mim mesmo e a meus pares, pois a maioria de minha família, como citei, era metalúrgica. É algo complicado para a cabeça. Torci para não haver necessidade disso. E, realmente, não houve. Parece que a Polícia Militar deu conta sozinha. Mas penso que brotou desses episódios o que se convencionou chamar de consciência política.

Minha militância nunca foi acirrada, quis mais entender o mundo em que vivia sob o prisma das questões sociais, econômicas e a compreensão da nossa história sob uma ótica diferente daquela que a escola nos enfiava goela abaixo. O campo em que começamos a atuar foi a luta dos moradores de favelas por melhores condições de habitação e fim da repressão. A partir daí, várias outras atividades foram se inserindo. E minha mente mudou.

Nunca fui preso, não apanhei da polícia, não respondi a inquéritos, nem depus, enfim, nossas atividades seguiam a onda de tudo aquilo que estava acontecendo no efervescente ABC dos anos 80, mas não na ponta, pelo menos a minha parte. Fizemos teatro, e depois fui cuidar de ser jornalista, enquanto o PT começava a se organizar e disputar eleições.

Participei, claro, de campanhas eleitorais, mas sempre na base, aquela coisa de distribuir “santinhos”, pintar muros, estender faixas, colar cartazes nos postes. Aí, sim, algumas vezes tivemos que correr da polícia, mas sem maiores consequências, além de ver o trabalho de uma madrugada ser desfeito pelos soldados.

Mais de trinta anos depois, o que vejo nas ruas nas últimas semanas me deixa atônito. Não posso dizer com precisão o que mobiliza tanta gente. Fora das redações compulsoriamente, sem ânimo para sair nas passeatas, sem conversar com quem está ali participando, minha análise se baseia no que tenho lido na imprensa e nas redes sociais, em comentários de várias vertentes, e o que percebo é que há uma geleia geral por aí. Um movimento denominado MPL, que, soube, está organizado há bem uns oito anos, consegue mobilizar milhares de pessoas por vários dias, a fim de reduzir a tarifa do transporte público.

Outras bandeiras são hasteadas, pois a revogação do aumento em várias cidades não interrompeu o movimento. O caldo engrossa e cada qual vem com uma palavra de ordem, uma reivindicação, desde temas específicos, como a não aprovação da PEC 37, até assuntos que requerem maior reflexão e outras formas de luta, como o fim à corrupção. Entram lemas estranhos ao móvel inicial da mobilização, como o impeachment da presidente da República, contra o aborto e por aí vai. A sensação é de que o negócio agigantou-se e tomou rumos inesperados. Sem falar nas ações criminosas, como vandalismo, saques e até um atropelamento com vítima fatal, com sinais claros de dolo.

Como disse, não posso dizer com propriedade, mas a sensação é de que a fagulha da insatisfação com a vida que vivemos foi acesa, e muitos, talvez, sem elaborar precisamente contra o que lutar, entraram para mostrar indignação, exigir que a política seja praticada em seu sentido real, que é zelar pelo bem-estar de todos, pelo bem comum. Não sei quantos dessa multidão podem dizer por que, afinal, estão na rua, mas tenho certeza de que o que pretendem é dizer que não estão felizes, que falta alguma coisa – ou muitas coisas -, que não se sentem representados pela maioria dos que estão aí governando, que querem ser ouvidos.

Tirando, evidentemente, a fração oportunista e mal-intencionada, essa juventude, que parece que percebeu que tem a força, tem condições de elaborar uma pauta, mesmo que seja a mais utópica, e fazer nascer em nossa nação aquilo que é o ideal na prática política, a democracia participativa, além da mera representativa. Como sempre fui da “base”, posso dizer, aí sim com conhecimento de causa, que prefiro ser liderado e guiado por meus ideais, conviver com o contraditório e fazer política de baixo para cima, de dentro para fora, como dizia um velho bordão revolucionário.