MINHA VINILTECA
Nesta nova série, vou compartilhar minha pequena vinilteca. São apenas 123 títulos. Um nada diante de colecionadores possuidores de andares inteiros de discos. Mas é a MINHA coleção. Cada um desses vinis tem uma história, um afeto, um por quê. São 75 LPs de artistas brasileiros e 48 de fora do Brasil. Sobre cada um, vou contar coisas como quando e em que contexto os adquiri ou ganhei (se me lembrar e houver anotação), a ficha técnica (se não houver encarte, recorro à internet) e alguma curiosidade, de minhas memórias ou disponíveis em resenhas. Claro que a maioria dessas informações qualquer IA pode lhes dar em segundos (faço uso de alguma, sim, quando não tiver outro meio de pesquisa), mas a minha emoção de quando escolhi o disco na loja, o coloquei no prato e depositei a agulha isso nenhum robô pode reproduzir. E é isso que quero lhes oferecer. As postagens seguem ordem alfabética. Intercalo LPs nacionais e internacionais.
Em homenagem a Jards Macalé
Como o disco chegou a mim
O álbum duplo "O Banquete dos Mendigos" apareceu no apartamento onde eu morava com minha então companheira Joana em São Bernardo do Campo (SP), creio que por volta de 1991. Não sei quem o esqueceu lá, já estava na estante antes de me casar com ela. Quer dizer, imagino quem o deixou lá, mas não digo, sob risco de a pessoa querer de volta (risos).
À época não tinha muitas informações sobre o disco, além daquelas disponíveis na capa, contracapa e encarte. O repertório e os intérpretes, de primeira grandeza, me chamaram a atenção de imediato, assim como a ilustração da capa, uma reprodução da "Última Ceia" de Leonardo da Vinci (1452-1519). E também a tarja ao alto do canto esquerdo: "LIBERADO".
Eu me lembro de sentir uma certa angústia ao ouvi-lo inteiro na primeira vez. É um disco gravado ao vivo, com meus artistas preferidos de sempre, com plateia aplaudindo, gritando, mas não me pareceu clima de festa: era como uma impossibilidade de se irradiar alegria, dado o período de trevas em que foi gravado. E a voz forte do poeta e futuro imortal da ABL Ivan Junqueira lendo artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos acrescentava tensão ao clima.
O contexto de produção
Contava
Jards Macalé (1943-2025) que, em 1973, ele estava duro e puto. Comendo da farinha do desprezo. Após dirigir em Londres o álbum "
Transa", de Caetano Veloso, no ano anterior, e não receber os devidos créditos, e de seu
LP homônimo de 1972 ser um fracasso de vendas, resolveu promover um espetáculo beneficente - em benefício próprio, bem entendido -, seguindo uma onda da época de se realizar shows para ajudar os artistas que enfrentavam a barra pesada da ditadura.
A ideia foi bem recebida e obteve adesões de nomes de peso como Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Edu Lobo, Gal Costa e de debutantes como Raul Seixas e Luiz Melodia. Agora faltava encontrar um local para as apresentações. Foi quando o então diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), Cosme Alves Neto, lhe contou que estava sendo organizada uma mostra em homenagem aos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e sugeriu que o espetáculo fizesse parte do evento. Jards topou na hora: farinha do desejo!
Assim, em 10 de dezembro (mesma data em que, em 1948, foi assinada a Declaração) de 1973, os músicos e intérpretes reuniram-se no MAM para um espetáculo cuja parte da divulgação ficou a cargo de meninos de favelas do Morro do Pinto e da Comunidade São Lourenço, que distribuíram pela cidade panfletos convidando para o evento. Mas, claro, se falar de direitos humanos em plena ditadura, governo Médici, não passaria batido.
Diz-se que a plateia, de cerca de 4 mil pessoas, estava coalhada de agentes da polícia à paisana (como se possível fosse algum disfarce) e os censores estavam na primeira fila do auditório. Soldados do Exército cercavam o prédio do museu. Não houve, contudo, repressão física, mas, como Chico Buarque fez questão de frisar, nem tudo era permitido. Em sua apresentação, Chico falou que seu repertório estava desfalcado e algumas canções foram proibidas de se executar, como "Vai Trabalhar, Vagabundo" (tema de filme homônimo de Hugo Carvana). No lugar dela, ele cantou trechos de "Jorge Maravilha", de Julinho de Adelaide, pseudônimo que usou à época para driblar a censura.
Detalhes técnicos
O show foi gravado de maneira sorrateira, driblando os olhares dos agentes da repressão, que chegaram a confiscar fitas de gravação, mas que, espertamente, foram enviadas a local seguro antes e os meganhas acabaram levando foram fitas virgens. Foi o primeiro desafio coletivo de artistas brasileiros à ditadura depois do Ato Institucional n° 5 (AI-5), no final do governo do general Médici (fonte:
Memorial da Democracia).
A direção geral do espetáculo foi de Jards Macalé, com Ana Maria Miranda como assistente; coordenação geral de Xico Chaves e Lula, com assistência de Flor Maria e Beto; Mauricio Hughes e Ray como técnicos de som e Etiny de contrarregra.
A gravadora RCA produziu e lançou o LP em 1974, mas a censura o proibiu e recolheu os exemplares das lojas. O álbum só seria liberado em 1979, com capa diferente (o original era uma foto da plateia, e não a reprodução da obra de Da Vinci). O encarte de 12 páginas traz as fotos e textos da primeira versão recolhida.
O disco teve coordenação artística e direção de estúdio de Jards Macalé; mixagem de Paulo Frazão e Luis Carlos; fotos de Alexandre Koester, Cleber Cruz e Ivan Klingen e direção de arte por Ney Tavora. O texto do encarte menciona e agradece o espanhol Antonio Muiño Loureda, diretor do Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio), um dos idealizadores da mostra; Ivan Junqueira, assessor de Imprensa do Centro de Informações das Nações Unidas no Brasil, que fez a leitura de artigos da Declaração; Heloisa Lustosa, diretora do MAM-RJ; o já citado Cosme Alves Neto; e Newton Anet, advogado e assessor jurídico.
O texto do encarte afirma que os artistas, gravadora e equipe abriram mão de seus direitos artísticos e fonográficos "em função de outros Direitos que se tornaram urgentes: o Direito à Vida, à Sobrevivência". Diz ainda que metade dos ganhos com as vendas seria detinada ao Centro das Nações Unidas no Brasil para ser entregue ao Special Sahelian Office, escritório especial da Divisão dos Direitos Humanos, em benefício de populações da África Central assoladas pela seca, como o oeste da Mauritânia e leste da Etiópia.
O disco é dedicado ao poeta piauiense
Torquato Neto, morto um ano antes.
Os músicos e as faixas dos LPs
Não há informações disponíveis sobre os músicos que acompanharam os intérpretes das faixas do álbum, supondo-se que alguns se acompanharam ao violão ou piano. Mas alguns chegam a mencionar seus acompanhantes. Edu Lobo e Milton Nascimento mencionam Danilo Caymmi na flauta; Bituca também apresenta Paulo, Claudio, Maurício e Toninho Horta (guitarra). O MPB4 sola e acompanha Chico, mas sem Magro.
O Grupo Soma, que toca neste LP uma faixa chamada PF (prato feito? Polícia federal?) era formado pelo baixista norte-americano Bruce Henry, Tomás Improta (teclados), Áureo de Souza (bateria) e o inglês Ritchie "Menina Veneno" (flauta). No show, o grupo tocou outras duas músicas: "Albuquerque Woman" e " Um Dia".
O LP duplo de 1979 contém 23 faixas, intercaladas pela leitura de 17 dos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Em junho de 2015, o selo Discobertas lançou uma caixa com 3 CDs (foto à esq.) contendo o show na íntegra - disponível no Spotfy (abaixo) -, com 43 faixas e a leitura integral do texto da Declaração, mas em faixa única ao final das apresentações.
A versão de 1974/1979 nunca foi editada em CD.
Disco 1
Lado A
1) Introdução
Art. 1º
2) "No Pagode do Vavá" (Paulinho da Viola) - Com Paulinho da Viola (voz e violão)
"Roendo As Unhas" ( Paulinho da Viola ) - Com Paulinho da Viola (voz e violão)
3) "Percussão" (Pedro dos Santos) - Com Pedro dos Santos
Art. 2 e 3
4) Art. 5
5) "Samba dos Animais" (Jorge Mautner) - Com Jorge Mautner (voz) e Nelson Jacobina (violão)
6) Art. 6 e 8
7) "Pra Dizer Adeus" (Edu Lobo/Torquato Neto) - Com Edu Lobo (voz e violão) e Danilo Caymmi (flauta)
Art. 9
"Viola Fora de Moda" (Edu Lobo/Capinam) - Com Edu Lobo (voz e violão) e Danilo Caymmi (flauta)
Lado B
1) "Palavras" (Luiz Gonzaga Jr.) - Com Luiz Gonzaga Jr. (voz e violão)
Art. 11 e 12
2) "Eu E A Brisa" (Johnny Alf) - Com Johnny Alf (voz e piano)
Art. 13 e 14
"Ilusão À Toa" (Johnny Alf) - Com Johnny Alf (voz e piano)
3) "Cachorro Urubu" (Raul Seixas/Paulo Coelho) - Com Raul Seixas
Art. 18
4) "P. F." (Bruce/Shields) - Com Grupo Soma
Art. 19
5) "Nanã das Águas" (João Donato/Geraldo Carneiro) - Com Edison Machado e Grupo
Art. 20 e 21
Disco 2
Lado A
1) "Pesadelo" (Maurício Tapajós/Paulo César Pinheiro) - Com MPB4
"Quando O Carnaval Chegar" (Chico Buarque) - Com Chico Buarque e MPB4
"Bom Conselho" (Chico Buarque) - Com Chico Buarque e MPB4
"Jorge Maravilha" (Julinho da Adelaide) - Com Chico Buarque e MPB4
2) "Abundantemente Morte" (Luiz Melodia) - Com Luiz Melodia
Art. 23 (a)
3) "Cais" (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos) - Com Milton Nascimento (voz e violão)
Art. 23 (b)
"A Felicidade" (Tom Jobim/Vinicius de Moraes) - Com Milton Nascimento (voz e violão)
Lado B
1) "Anjo Exterminado" (Jards Macalé/Waly Salomão) - Com Jards Macalé (voz e violão)
"Rua Real Grandeza" (Jards Macalé/Waly Salomão) - Com Jards Macalé (voz e violão)
Art. 23 (c)
2) "Asa Branca" (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira) - Com Dominguinhos (voz e acordeon)
"Lamento Sertanejo" (Dominguinhos/Gilberto Gil) - Com Dominguinhos (voz e violão)
3) Art. 30
4) "Oração de Mãe Menininha" (Dorival Caymmi) - Com Gal Costa
Ouça a íntegra no Spotfy
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