Era um menino solitário, gostava de inventar músicas, criar
brinquedos e enterrar coisas no jardim (ferramentas, talheres, até um pobre de
um franguinho, sem saber, contudo, que o bichinho morreria). Detestava cortar
cabelo, tomar banho, calçar sapatos e comer coisas como beterraba, abobrinha,
mandioquinha e cenoura. Leite, nem pensar (tive raquitismo e tomei isso até enjoar).
Falava sozinho (até hoje). Desenhava garatujas que expressavam aquilo que
gostaria de ser (um cara fortão – por causa do raquitismo, fui um menino
magricela e frágil -, guitarrista, cabeludo e cheio de charme). A escola era um
martírio, porque tinha de interagir com desconhecidos e pessoas que
representavam, à época, a autoridade constituída (professores, diretores, bedéis).
A infância, até onde a memória pode alcançar, foi bonita,
dentro do estrito círculo de conforto que me deixava em paz; sair dessa área me
aterrorizava. Tinha poucos amigos na vizinhança. Lembro-me de um casal de
irmãos nisseis de quem gostava muito. Os vizinhos de muro eram muito
arruaceiros, e me intimidava sua rudeza, piorou quando sem querer fiz um talho
com a tampa de lata de goiabada que joguei ao ar para ver voar e, azar, atingiu
o rosto de um menino. Castigo no quartinho de passar de minha mãe. Nunca vira
tanto sangue antes.
Sem noção, quase incendiei a edícula de casa ao atear fogo a
um monte de folhas secas de bananeira que estava jogado junto à parede.
Medroso, saí de fininho e me escondi. Por sorte, extinguiram-se logo as chamas,
mas as labaredas subiram tão alto que o susto foi enorme. Outra ocasião,
brincando de cigarro, quase queimei minha própria cara ao acender uma folha de
caderno que enrolei e pus na boca, fingindo fumar, para imitar o meu pai.
A mãe passava roupas na edícula ouvindo rádio, músicas dos
anos 60 que até hoje me lembro. Uma de minhas favoritas era uma versão em
português do Hino ao Amor, de Edith Piaf, que, anos depois, ao ouvir no
original, me deixou emocionado. O rádio foi o primeiro meio de comunicação a
que tive acesso, antes mesmo da televisão, que entrou em casa tempos depois, e
provocou tanta briga com minhas irmãs. Disco sempre houve em casa, meus pais
gostavam muito de música e tinham uma coleção razoável, a maioria de orquestras,
bandas marciais. Coisas como Ray Conniff, Românticos de Cuba, Lafayette, bandas
da Polícia Militar, da Marinha, por aí.
Em visitas à casa de minha avó materna, tive contato com
revistas femininas, de uma prima minha de quem não tenho notícias há anos. Eram
revistas que cobriam a vida de artistas de rádio e TV, cantores, algumas de
moda, como uma tal de Burda (achava gozado o nome), fotonovelas. Curioso,
rasgava as fotos das moças na esperança de ver o que havia por baixo dos
vestidos. Meu tio Mário era leitor de almanaques, e quando Chico Buarque lançou,
nos anos 80, um disco com esse nome, ele me soou extremamente familiar. Fiquei
um tempo viciado em palavras cruzadas.
O vício seguinte foi baixa literatura. Devorava livrinhos de
faroeste e de espionagem vendidos em bancas de jornal, em papel ordinário e
formato de bolso. Antes de consumir gibis, era isso o que eu lia. Esses
romances me estimulavam a brincar de caubói e espião, e criava minhas histórias
e as encenava em casas em construção na vizinhança, nos matagais e nos
campinhos onde se jogava futebol. Eu nunca joguei; preferia caçar saúvas com
hastes de capim-gordura a ficar correndo atrás de bola e tomar caneladas.
A família era engraçada, grande, diversificada. Os natais
eram animados, cheios de comidas, algazarra, a italianada típica, falando alto,
brigando, soltando maledicências. Eu, observador, tentava entender cada um
deles, mas sem me envolver. Mantendo um certo distanciamento crítico – sem o
saber, claro. Que eu me lembre, não havia interação entre os parentes de minha
mãe e os de meu pai. Não me recordo de
evento que tenha juntado as duas famílias.
Os fins de semana em que não íamos
ao zoológico, à praia ou ao parque de diversões, eram de visita às avós, tios e
primos. Não brincava muito com os de minha idade. Gostava mais de ficar junto
aos adultos ouvindo suas histórias e queixas. O problema era que os primos eram
mais fortes e gostavam de me bater e as primas não curtiam muito a presença de
um menino em suas brincadeiras de casinha e de bonecas. Mas às vezes rolava uma
roda, um pega-pega, esconde-esconde, e eu podia participar.
Gostava de subir em árvores, muros, telhados, postes, e
brincava de avião, fingindo pilotar. Uma goiabeira na casa da mãe de minha mãe
era minha preferida. E lá passava horas, isolado, com a cabeça nas nuvens,
imaginando viagens sem fim. E a imaginação corria solta. Tanto que muitas vezes
me perdia ao andar com a família, ou caía no córrego por não prestar atenção no
caminho. Me perdi muitas vezes, por ter um precário senso espacial que até hoje
me é deficiente. Mas sempre me acharam, pois o medo me impedia de ir longe
demais.
Quando chegou a época de ir à escola o terror se apossou de vez
de mim. E, sem o saber, eu tinha motivos para isso...
2 comentários:
Você sempre foi diferente da 'massa' então né pai!! uma criança muito especial!! E ótima memória... eu nao lembro de nada da infância! rsrs.. te amoo! bjsss
Diferente? Acho que sim. Mas calma, vc ainda não tem memória da infância, mas depois as terá. Tb te amo muito.. Bjs
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