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quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Morte de Vanusa resgata e sepulta o 'eu' menino


Não imaginava que a notícia da morte da cantora e compositora Vanusa fosse me impactar tanto. Uma insuficiência respiratória a levou no dia 8 de novembro de 2020, aos 73 anos, em seu leito em um lar para idosos na cidade de Santos, litoral de São Paulo.

Não vou dizer que acompanhava sua carreira nos últimos anos. Havia muito tempo que não ouvia nada dela, nem me dei conta de que Zeca Baleiro havia produzido seu último CD, que leva seu nome de batismo, "Vanusa Santos Flores", de 2015. Mas quando menino eu era apaixonado pela loira.

Sua imagem me remete à casa de São Caetano do Sul, onde vivi até cerca de 9 anos de idade. À prima loira de lábios carnudos que me encantava, à professora do primeiro ano de primário que se parecia um pouco com ela. Às canções que ouvia no rádio enquanto a mãe passava roupas na edícula em frente ao jardim onde eu enterrava seus talheres e ferramentas do pai.

A mesma São Caetano do Sul onde, na data de aniversário da cidade, 28 de julho, meu pai nos levava ao estádio municipal, então chamado Lauro Gomes de Almeida, hoje Anacleto Campanella, para os shows promovidos pela prefeitura para marcar a efeméride.

Não me lembro se Vanusa chegou a cantar em um desses shows de aniversário da cidade, provavelmente sim. Ia toda a galera da Jovem Guarda - menos Roberto... ele nunca foi. Tinha shows dos Aqualoucos, o calhambeque que se desmanchava enquanto andava, o globo da morte com as motos, os campeonatos esportivos e... os shows!

Era minha hora favorita: ouvir aqueles cantores que eu via no Show do Dia Sete, na TV Record, ou no quadro Os Galãs Cantam e Dançam, do programa do Silvio Santos. Chacrinha acho que ainda não me chamava a atenção.

Mas a Vanusa me causava uma coisa diferente. Gostava de Wanderlea, Rosemary, Waldirene, Martinha, depois Rita Lee, mas a Vanusa era diferente. Não sei explicar. Nos meus sete, oito anos sua voz, sua imagem, seu jeito, seu olhar me elevavam a universos oníricos então inexplorados por tão jovem pessoa.

E também seu repertório diferia das músicas dos demais artistas populares de então. Ela cantou Belchior antes de Elis, gravou Milton Nascimento, João Bosco e Aldir Blanc, Luiz Melodia, Carlinhos Vergueiro, Caetano Veloso, Raul Seixas, Zé Rodrix, até Hermeto Paschoal, vinhetava Beatles... E com uma dignidade e leveza...

Poucos anos depois, com acesso a revistas de fofocas como InTerValo, Sétimo Céu, Melodias, que minha mãe, tias e primas liam, ficava chateado com as histórias tristes que contavam sobre suas crises no casamento com Antônio Marcos, este um cara que sempre me incomodava por seu ar ao mesmo tempo rebelde e depressivo.

Depois nos mudamos de São Caetano e nunca mais fomos aos shows de aniversário e Vanusa começou a ser substituída por outras artistas, conforme ia ampliando meu universo para além dos programa televisivos, por causa da loja de discos que meu pai comprou.

Quando ela reapareceu no vexaminoso episódio do Hino Nacional, em 2009, soube que andava doente, e fiquei chocado. Não ri da tropeçada. Para falar a verdade, nem procurei ouvir o episódio.

Mas hoje, após sua partida me resgatar aquele menino, ouvi tudo que pude de seus tempos gloriosos. E esse último disco está divino. A voz já denunciando o passar do tempo, mas ainda firme e linda. O repertório impecável: Angela Ro Ro, Nô Stopa, Zé Ramalho, Vander Lee, entre outros, e a produção de Zeca tão delicada...

Da mesma forma que essa sua passagem trouxe de volta à memória o garotinho de calças curtas de São Caetano, seus sonhos e devaneios, também o sepultou. Não há mais essas ilusões, aquela ingenuidade, aquele resplendor que a descoberta do mundo favorecia...

Agora, mais de 50 anos depois, o menino de outrora habita o asilo desse corpo idoso que mantém em uma caixa dourada da memória as lembranças de uma vida que desabrochava e não sabia o quanto isso ia doer um dia...


"Vou tentar salvar esse pouco que ainda resta

Da minha juventude"

(Mistérios, Zé Geraldo e Mario Marcos)