O mineiro João Bosco fez três apresentações neste meio de janeiro no Sesc Vila Mariana (SP), dias 17, 18 e 19, coincidindo, no caso do sábado, da homenagem que Serginho Groisman lhe dedicou no "Altas Horas", da TV Globo, junto ao ex-titã Nando Reis.
Fui ver João domingo, 19, por coincidência data em que, em 1982, a gaúcha Elis Regina (nascida aos 17 de março de 1945) deixou esse plano. Claro, o mineiro, de cuja histórica parceria de 50 anos com o carioca Aldir Blanc (1946/2000) a Pimentinha apropriou-se e fez suas tantas obras-primas, não poderia deixar de homenagear. O que fez nos derradeiros minutos do show de duas horas no incrível teatro Antunes Filho, de acústica impecável.
Aos 78 anos (nascido em Ponte Nova aos 13 de julho de 1946), João Bosco de Freitas Mucci, cuja primeira gravação foi "Agnus Sei", parceria com Blanc, lado B de "Água de Março", de Tom Jobim, em disco lançado pelo jornal anarco-porraloka" Pasquim em 1972, trouxe ao Sesc um apanhado de pérolas de sua carreira.
O show (falo de domingo, 19, quando fui assistir, mas me parece que o set list foi rígido nos três dias) começa com "Incompatibilidade de Gênios" - dele e Aldir, do LP "Galos de Briga", de 1990, após a qual João apresenta sua banda: o carioca Ricardo Silveira (guitarra) e os gaúchos Guto Wirtti (baixo e backing vocal) e Kiko Freitas (bateria e percussão). Música de uma ironia ímpar, imortalizada por Clementina de Jesus (1901/1987) em 1975.
Em seguida, toca "Bala com Bala", lançado por Elis em seu primeiro álbum em parceria com o futuro marido César Camargo Mariano, "Elis", de 1972, produzido por Roberto Menescal. Bosco gravaria a canção em seu álbum homônimo de 1973.
Aí João dá um salto até o LP "Gagabirô", de 1984, de onde extrai "Prêt-à-Porter de Tafetá", letra de Aldir que mistura coisas de nossa cultura afrobrasileira com um pastiche francês "a nível de" sofisticação. Depois vem "Abricó-de-Macaco", de João e seu filho Francisco Bosco, de disco de mesmo nome de 2020, que, teoricamente, dá nome ao show, mas de cujo repertório só tocam esta.
A próxima é a aclamada "De Frente para o Crime", do LP "Caça à Raposa", de 1975; três de 1982: "Nação", "Tanajura" e "Coisa Feita" (de Bosco, Blanc e Paulo Emílio), dos álbuns "Comissão de Frente" e "Não Vou Pro Céu, Mas Já Não Vivo No Chão". "Nação" foi gravada por Clara Nunes (1942/1983) em LP homônimo um ano antes de morrer.
A nona do espetáculo é "Odilê, Odilá", do álbum "Cabeça de Nego", de 1978; seguida por "Gênesis (Parto)", de "Tiro de Misericórdia", de 1977; avança para "Ronco da Cuíca", outra do "Galos de Briga"; e termina a temática do sofrimento dos escravizados africanos com "Sinhá", dele e Chico Buarque, que o carioca de "A Banda" gravou em 2011 em álbum homônimo e Bosco em "Mano que Zuera", de 2017.
Agora temos uns momentos de puro romantismo, com "Desenho de Giz", parceria com Abel Silva, gravado em "Ai, Ai, Ai de Mim" de 1986, e "Jade", do disco "Bosco", de 1989.
A próxima é uma parceria com o ex-titã Arnaldo Antunes, "Ultra Leve", também do "Mano que Zuera", momento em que Bosco desinibe e troca umas ideias com a plateia. Diz que essa música entrou na apresentação anterior, e, apesar de a considerar algo na linha pós-bossa nova, o baterista Kiko viu algo de funk carioca nela.
Momento Elis
Mais descontraído, destaca que era 19 de janeiro e se recorda que, em 1982, estava em uma praia no Espírito Santo sem telefone quando ouve pelo rádio sobre a morte de Elis. Aí em sua homenagem toca "Transversal do Tempo", gravada por ela no álbum "Elis", de 1977, e que intitulou seu LP de 1978 (sem trazer a música). Como a letra fala de alguém preso em um táxi, com sinal amarelo eterno, eles tocam uma introdução instrumental como se fosse algo que estava passando no rádio do táxi.
Emenda com "Corsário", com "Concierto de Aranjuez" (Joaquín Rodrigo) na introdução. Elis cantou esta em especial da TV Bandeirantes em 1976 e foi lançada no álbum póstumo "Luz das Estrelas", de 1984. João a gravou no LP "Bosco", de 1989.
A última (antes do bis), claro, tinha de ser "O Bêbado e a Equilibrista", com a perene introdução de "Smile", de Charles Chaplin, que Elis sacramentou em seu álbum "Essa Mulher", de 1979, e Bosco em "Linha de Passe", do mesmo ano.
A música foi inspirada na morte do cineasta Charles Chaplin, em 25 de dezembro de 1977, mas a letra de Aldir acabou abordando coisas do Brasil da época e se tornou, espontaneamente, uma espécie de hino da anistia, promulgada finalmente em 1979.
Dizem que ela foi tocada por muitos em aeroportos em gravadores portáteis na recepção da volta dos exilados, entre eles o irmão do Henfil (Henrique de Souza Filho, 1944/1988), Betinho (Herbert de Sousa, 1935/1997).
O bis foi a grande "Papel Marchê", de Bosco e do baiano José Carlos Capinam, também do "Gagabirô". A música ganhou projeção ao ser incluída na trilha da novela global "Corpo a Corpo", de 1984/1985, tema do personagem de Antônio Fagundes (Osmar).
Foi um espetáculo digno do nome, com uma banda superentrosada e um João Bosco com uma voz firme e um violão singular que não tem como classificar. Bolero, samba-jazz, cabaré, gafieira? Só sei que, em alguns momentos, me parecia estar diante de sir Duke Ellington (1899/1974) conduzindo sua orquestra.
Set list (música e álbum original):
1) Incompatibilidade de Gênios - "Galos de Briga", 1990
2) Bala com Bala - "João Bosco", 1973
3) Prêt-à-Porter de Tafetá - "Gagabirô", 1984
4) Abricó-de-Macaco (João e Francisco Bosco) - "Abricó-de-Macaco", 2020
5) De Frente pro Crime - "Caça à Raposa", 1975
6) Nação - "Comissão de Frente", 1982
7) Tanajura- "Não Vou Pro Céu, Mas Já Não Vivo No Chão", 1982
8) Coisa Feita (João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio) - "Comissão de Frente", 1982
9) Odilê, Odilá- "Cabeça de Nego", 1978
10) Gênesis (Parto) - "Tiro de Misericórdia", 1977
11) Ronco da Cuíca - "Galos de Briga", 1990
12) Sinhá (Chico Buarque e João Bosco) - "Mano que Zuera", 2017
13) Desenho de Giz (João Bosco e Abel Silva) - "Ai, Ai, Ai De Mim", 1986
14) Jade - "Bosco", 1989
15) Ultra Leve (Arnaldo Antunes e João Bosco) - "Mano Que Zuera", 2017
16) Transversal do Tempo - "Galos de Briga", 1990
17) Concierto de Aranjuez (Joaquín Rodrigo) e Corsário - "Bosco", 1989
18) Smile (Charles Chaplin) e O Bêbado e a Equilibrista - "Linha de Passe", 1979
BIS
19) Papel Marchê (João Bosco e Capinam) - "Gagabirô", 1984
* Exceto as indicadas, todas composições de João Bosco e Aldir Blanc
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