O Barquinho Cultural

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domingo, 30 de março de 2014

Nasci em 1961

Lembro-me de sempre ver tanques na rua em minha infância
Nasci em maio de 1961, poucos meses antes de Janio Quadros renunciar à presidência e abrir uma crise, com a posse do vice, Jango, rejeitado pelos setores conservadores, civis e militares.

Era muito pequeno em 31 de março de 1964, quando as tropas do general Mourão marcharam de Juiz de Fora ao Rio para depor Jango, traído por muitos que juraram apoiá-lo até a morte (algumas valises recheadas de dólares, soube-se depois, demonstraram o alcance da fidelidade desses).

Em 1968, ano do temível Ato Institucional número 5, eu já estava na escola. Via muitos tanques verde-oliva nas ruas, sem entender direito do que se tratava. Mas entrei no que se chamava à época Grupo Escolar já embuído do espírito militar daqueles tempos. Antes das aulas, todos tinham de se perfilar no pátio, uniformizados, e entoávamos o Hino Nacional. Na classe, disciplina rígida. Tínhamos de nos levantar quando a professora ou o diretor (ou diretora) entrava.

Em 1972, o Brasil comemorava o sesquicentenário da Independência. Era o governo do general Médici. Morávamos no Ipiranga, local símbolo do 7 de Setembro. O desfile, lembro-me bem, foi algo arrebatador. Muitas tropas nas ruas, as Forças Armadas mostrando seu poderio, para atemorizar os que postulavam aventurar-se em resistências como a do Araguaia, à esta altura já palco de combate entre os guerrilheiros e os militares.

Estudava em um ginásio que era um verdadeiro quartel. Professores tratavam os pequenos alunos como soldados rasos, exigindo obediência total, castigando os infratores com reguadas nas costas (algumas até na cabeça), gritando com os que não compreendiam a lição. Eu, com temor de ser humilhado perante os colegas, nem ia às provas das matérias que não tinha entendido, preferindo o zero à censura severa dos docentes e à inevitável gozação na saída.

Não tinha conhecimento nessa época de fatos como censura à imprensa e às obras artísticas, exílios, cassações, fechamento do Congresso, tortura, luta armada, sequestros de embaixadores... A TV e o rádio, meios de comunicação aos quais eu mais tinha acesso e apego, traziam um Brasil edulcorado, forte e glorioso, que só o primeiro choque do petróleo, em 1973, veio a abalar. Meu pai quebrou e voltou à fábrica e nós, retornamos ao ABC, onde nasci.

Geisel subiu à presidência em 1974 prometendo abertura lenta, gradual e segura. Foi nesse ano que vi voltar às ruas as campanhas políticas, algo que tinha sumido desde meus 5 ou 6 anos. Um cara estranho, queixudo, narigudo e com enormes costeletas à la Elvis, de nome igualmente esquisito, concorria ao Senado pelo partido da oposição consentida: Orestes Quércia, do MDB. Seu adversário, Carvalho Pinto, da Arena. Quércia foi eleito, junto a vários outros parlamentares emedebistas.

As coisas ficaram piores. Na escola, já no então chamado segundo grau, as aulas de Organização Social e Política Brasileira (OSPB), versão da ginasiana Educação Moral e Cívica, pregavam o potencial de nosso imenso país, com a Transamazônica apresentada como o símbolo máximo do poder de nossa gente. O Brasil tenta enfrentar o poderoso cartel da Opep com o programa Pró-Álcool. O Metrô começa a ser construído em São Paulo. Maluf rasga enormes rodovias pelo estado. Nos porões, porém, morriam Vladimir Herzog, Stuart Angel, Manoel Fiel Filho e tantos outros. Jango e Juscelino morrem em circunstâncias estranhas...

Claro que eu não acompanhei nada disso, mas sentia algo estranho no ar. Em Santo André, conheci um rapaz de minha rua cujo pai vivia na Suíça, autoexilado. Por meio dele, ouço pela primeira vez uma palavra que só saberia o que significava dois anos depois, quando fui servir o Exército: subversivo. Lia livros de Adelaide Carraro, Plínio Marcos, assistia às novelas escritas por dias Gomes, ouvia músicas de compositores como Chico Buarque... De alguma forma, esses autores driblavam a censura.

Quando prestei o serviço militar, no Tiro de Guerra de Santo André, em 1980, as greves do ABC estavam a todo vapor. O líder sindical Lula despontava na mídia. No quartel, o clima era de apreensão. Podíamos ser acionados a qualquer hora se a situação ficasse tensa. Minha cabeça entrava em parafuso, porque meu pai, tios e vários primos eram operários metalúrgicos e seria demais eu atacar armado a classe à qual eu pertencia. Felizmente, não foi necessária a intervenção.

Antes de ingressar na faculdade, tomei conhecimento da história de nosso país desde meu nascimento, que a escola ocultava. Li muitos livros a respeito, conversei com muita gente que lutou contra a ditadura. Soube, em seguida, que a questão não se limitava ao Brasil: vários países na América Latina passaram também por golpes militares.

O que resta de tudo isso, 50 anos depois, é a sensação de que o regime militar ainda está encruado em muitas mentes, muitos ainda defendem o período e até seu retorno – não se pode subestimá-los, penso.

Acho que o debate é inevitável. Posições políticas diferentes e divergentes são importantes, mas em um clima de democracia, de respeito às opiniões e à vontade da maioria. O erro, creio eu, está em impor, à força, uma postura. Que 1964 não se repita.

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