Foto: Johannes Eisele/AFP |
Nesses dias de reencontro com amigas que havia anos não
tinha contato, uma reflexão me vem à cabeça, e tem a ver com essa eleição que
hoje se iniciou para o próximo papa da Igreja Católica. Não professo essa
religião, nem batizado e crismado sou; primeira comunhão a tive já aos 19 anos,
e sem ter passado pelos procedimentos que me parecem necessários para ingerir o
corpo e o sangue do Cristo. Porque minha família é de origem protestante, não
esses neopentecostais de agora, que conseguiram até introduzir um membro cheio de
preconceitos em uma comissão importante da Câmara dos Deputados. O fato é que,
nessa igreja de meus pais, não se batiza recém-nascidos, e, quando atingi a idade
de o ser, eles tinham saído da religião, não por vontade própria, mas por algo
que eu nunca soube direito. Enfim: sou pagão. Vou para o inferno ao morrer,
dizem.
Mas, no começo de 1980, fui atraído à paróquia de meu bairro
para participar de um grupo de jovens que se reunia para discutir religião,
ensaiar para o coral da missa e fazer algum trabalho pastoral junto às favelas
da região. Confesso que o argumento que meu amigo usou para eu lá ir foi o
de que havia muitas meninas bonitas participando. Eu, aos 19 anos, reco (para
quem não sabe, o garoto que está prestando o serviço militar obrigatório),
achei a ideia interessante e lá fui. Ele tocava violão e logo se tornou popular
na comunidade (nome que dávamos ao grupo).
Para mim, foi uma virada total. Tinha, nesse tempo, algo de
errado na mente, uma insatisfação com o rumo da vida, um passo em falso e
cairia para um campo que nenhum pai sonhou em ver o filho seguir. Essa comunidade
foi um tipo de redenção: encontrei lá pessoas que comungavam das mesmas
expectativas, sonhos, frustrações, desejos de dar algum sentido à existência. E
entender esse Deus que, na religião de meus pais e avós, era tão opressor, tão
regulador, regrado, controlador...
Em pouco tempo houve eleição para a coordenação do grupo e
me incentivaram a me candidatar. Foi a primeira (e única) vez que postulei a um
“cargo” eletivo. Fiquei em segundo lugar e assumi a vice-coordenação do Juba
(era esse o nome que deram à comunidade, sigla de “Juventude Unida Baseada no
Amor”). Minhas tarefas eram, entre outras, escolher o tema de discussão da reunião
semanal, procurar na Bíblia alguma passagem que tivesse a ver com o assunto,
redigir a ata da reunião e substituir o coordenador em sua ausência.
Gostei da coisa. O grupo era acompanhado pelos seminaristas
da paróquia, uma galerinha que lá se preparava para ser padre um dia, em um
seminário meio fora do comum, organizado pelo pároco, um sujeito de origem francesa
que tinha um trabalho junto aos moradores de favelas e seguia o que se
denominou Teologia da Libertação, com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)
atuando junto à população em um sentido de tornar a Igreja Católica mais
voltada aos “oprimidos”, com a premissa de que foi a esse povo que Jesus se
dirigia quando aqui esteve.
Até cheguei a cogitar a possibilidade de entrar nesse
seminário, me tornar padre. Mas a paixão arrebatadora por uma menina linda do
grupo frustrou meus planos. Não rendeu nada com a garota e a vocação acabou não
se manifestando. E o resto é história.
O que importa aqui é o fato de eu ter, nesses últimos dias,
me reencontrado com pessoas que participavam desse grupo naquela época, pessoas
que fiquei muito tempo sem ver e ter notícias, e revê-los foi muito intenso,
foi um resgate de uma pessoa que julgava esquecida lá dentro de mim, que perdeu
um pouco da ilusão, da ingenuidade, dos sonhos. Que teve que encarar a
realidade, sem desistir, contudo, de acreditar na possibilidade de o mundo
ficar melhor, mais justo, mais igualitário.
Éramos fãs dos papas Paulo VI e João XXIII; este promoveu o
Concílio Vaticano II, trazendo a Igreja para mais perto dos pobres, e aquele deu
continuidade a esse trabalho (posso estar falando besteira, mas escrevo de
memória, sem pesquisa; se alguém contestar e esclarecer, agradeço).
Depois de mais de um ano de atividades no Juba, resolvemos montar
um grupo de teatro amador, o Tupi (Teatro Unido Popular Independente –
gostávamos de meter “unidos” em tudo [rs]), para fazer um trabalho mais lúdico
e provocar discussão junto aos expectadores. Montamos a peça “A Invasão”, de
Dias Gomes, mas mudando o final, para melhor condizer com os fatos pós 31 de
março de 1964. Levamos a montagem por um ano a favelas, comunidades de bairro,
sindicatos, clubes, onde houvesse gente a fim de debater a realidade (!).
O grupo extinguiu-se com o surgimento do PT, o padre mudou
sua postura e voltou à antiga prática católica de promover encontros de casais,
catequização, grupos de estudos bíblicos e de corte e costura, enfim, largou um pouco a mão daquele
trabalho social. E a Igreja também, com João Paulo II, seguiu esse rumo. Pouco
depois, em 1985, o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (coisa que remonta à Inquisição), Joseph Ratzinger, condenou ao silêncio o frei Leonardo Boff, um dos
teóricos da Teologia da Libertação, por causa de seu livro “Igreja, Carisma e
Poder”. A Igreja Católica mudava, e
Ratzinger, depois papa Bento XVI, parece que levou essa “nova” doutrina ao
paroxismo. Ele que renunciou ao cargo no último dia de fevereiro deste ano.
Agora, os cardeais estão a escolher seu sucessor. Não tenho
tido interesse em acompanhar o processo. Há muito deixei de me importar com os
rumos dessa igreja, mas pelo que tenho ouvido e lido, essa religião continua
distante dos tempos atuais, das questões fundamentais que importam ao seu
rebanho, em nome, talvez, de igual opressão, regulação, regras e controle da igreja de minha infância. Assim,
fico com meu Deus, e a ele me dirijo sem intercessão de algum de seus pastores.
Se me ouve, não sei. Mas imaginar que alguém zela por você em algum canto dá um
certo conforto.
2 comentários:
Jesus veio exatamente pra libertar e deixar que as pessoas cheguem a Deus sem precisar de intercessores! O único intercessor é ele mesmo! "Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai a pai senão por mim." :)
É isso mesmo, filhinha... É capaz de, se Jesus voltasse à Terra nos dias de hoje, o papa não o reconhecesse...bjs..
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